05/09/2011

Descobrir a pólvora

Daniel Oliveira diz que "temos, em Portugal, como no resto do mundo ocidental, uma nova corrente ideológica. Uma espécie de neoliberalismo de Estado."

A noção de que o neoliberalismo é uma ideologia anti-Estado e anti-redistribuição continua a colonizar discursos mais ou menos progressistas, mais ou menos populistas e mais ou menos demagógicos. De um lado e de outro. Aquilo que me incomoda, quando esta noção é repetida ad nauseam, é relativamente simples. Primeiro, é falsa. Segundo, é perniciosa.

É falsa porque o tal "neoliberalismo de Estado" não é novo. O prefixo "neo-" é enganador, porque o neoliberalismo não recupera qualquer tradição liberal ou anti-estatista; é, como toda a gente percebeu em 1973, um conjunto de práticas que visa a reconfiguração do Estado para a providência corporativa e a transferência contínua do risco para a(s) sociedade(s). Não há aqui qualquer novidade. É dito, no mesmo texto, que "em vez do velho debate entre Estado Providência e Estado mínimo, aquilo a que assistimos é a uma síntese: o Estado cobrador." O "velho debate" morreu à nascença. Philip Mirowski já escreveu extensivamente sobre a genealogia e desenvolvimento intelectual daquilo a que se chama economia neoclássica e o seu braço armado, o tal "neoliberalismo". Os seus ideólogos nunca foram anti-estatistas; foram e são, isso sim, hipócritas com uma capacidade admirável, admita-se, para mistificar a realidade (equiparando democracia a capitalismo), usar preconceitos historicamente adquiridos para promover interesses ocultos e manipular o debate público, através de think-tanks e da monopolização sistemática dos meios de produção e difusão da informação. Foi assim que nos convenceram de que o seu espírito revolucionário e puritano servia os interesses da maioria.

É por isso que se acredita que o neoliberalismo é originalmente anti-Estado. Embora encerre uma contradição evidente com a prática neoliberal, trata-se de um artifício discursivo que legitima a sua ascensão - porque, assim, a cruzada neoliberal transforma-se em cruzada pela liberdade, contra a servidão e contra os interesses instalados. Apesar de ser uma cruzada reaccionária e conservadora que recupera as satrapias como imperativo político e dependeu sempre do patrocínio público para se impor enquanto senso comum.
Ainda que tenhamos provas históricas suficientes para contestar e enterrar esta ideia, ela continua a surgir. A palavra "fanatismo" parece exagerada, mas, olhando para Reagan, Thatcher, Roger Scott, Pinochet ou Carlos Menem, não podemos evitá-la. O neoliberalismo é estatista e os seus ideólogos não pretendem desarmar a sua arma preferida. São darwinistas sociais que acreditam na punição da diferença e não hesitarão em aumentar as despesas com a vigilância e a violência legitimada pelo Estado.

A ideia é perniciosa porque impede a esquerda de formular uma alternativa real ao pensamento único. Continuando a promover esta versão da história, comentadores como Daniel Oliveira legitimam a revisão da história do neoliberalismo. Legitimam a ideia de que o Estado continua a ser "destroçado" ou "minado" pela quinta coluna neoliberal. É necessário combater esta ideia. Aqui há uns tempos, já falei da obra de Loïc Wacquant. Em poucas palavras: se o neoliberalismo, após 2001, se transformou, foi ao deitar as garras de fora e acelerar a transformação do Estado num leviatã penal. Onde as regiões sombrias do mundo social são transformadas num pesadelo orwelliano e as regiões olímpicas parecem utopias saídas de Huxley. O Estado não está a ser minado pelo neoliberalismo. O Estado é, hoje por hoje, um instrumento de recomposição radical da realidade à medida de plutocratas. Não é o último reduto da justiça e democracia. Deixemo-nos de efabulações e chamemos as coisas pelos nomes. A esquerda anda em modo defensivo há décadas por várias razões. Esta é uma delas: fala-se muito do Estado, mas não se discute ou teoriza o mesmo. É um dado adquirido ou uma divindade incognoscível. Tiradas bafientas como "neoliberalismo de Estado" apenas contribuem para dar mais gás às mistificações de gente como o Álvaro, que diz não saber o que é um neoliberal.