14/01/2012

Dois mil e doze


Dois mil e doze. Ano de luta e frases longas. Deixo as frases curtas para uma releitura de Molero e de Márquez, do Outono do Patriarca e Dinis Machado. Deixei as resoluções no mundo em que não tinha cabelos brancos e ainda tinha o meu pai por perto, a embirrar com as estrelas porque os desenhos as dizem de cinco pontas e não, elas têm mil milhões de pontas e outros mil milhões de brilhos curtos e longos. Era uma revolta que sentia com as representações do mundo, os seres humanos não têm ambição, esqueceram-nas grutas de Altamira, era nessas épocas escavadas que os artistas queriam pintar uma realidade nova nas grutas para esquecer um friasco danado, a carne de boi a crepitar e aqueles olhos crespos (talvez fossem as sobrancelhas a fazer reflexo na parede e terá nascido Deus e o Buda e Alá e todas as coisas que deram novos homens ao mundo) a pintar mais pontas nas estrelas do que elas têm na realidade. Os seres humanos já não sonham as utopias nem se deixam sonhar por elas; vejo-as anafadas, rutilantes, dormem num livro de histórias e nós todos não passamos de folhas de erva, planetas e planetas como gotículas nos sonhos das utopias anafadas. E o pior é que nunca mais acordam, dizia ele, o meu pai, nunca mais acordam e nunca mais fazemos a revolução, para estes cabrões serem todos passados a fio de espada, primeiro os pretos e depois os brancos - mas pai, não podes fazer a revolução socialista se acreditas nessas coisas - rapaz, deixa-me ser o que sou, porque, no fim, somos todos irmãos e não deixo o meu irmão preso na estrada, tronco no alcatrão fundido, só porque é preto ou chinoca; nisto estamos todos juntos e eu até gosto mais da pretalhada que desses ordinários, essas coisas nefastas que adoram o dinheiro e vão à missa comungar, mas não tocam no pão ázimo, tomaram o gosto das notas e preferem comê-las. Rapaz, só não me faças a desfeita: renega a religião, mas não te renegues nunca, que o teu maior tesouro é não sonhares com a servidão. Se deixas a coluna quebrar, até podes voltar a andar, mas nunca deixarás de rastejar, como estes penteados, esta classe de bandidos que corta árvores de madeira rara, esses colossos com que sonhei e não vou ver, para palitar os dentes, um de cada vez, afiado com moedas ensanguentadas, fincam a dentuça na carne e tu não deixes, rapaz, tu não deixes, que eles fazem-te doente, aquela fúria de nunca verem quem amam, onde é que isso já se viu?, quem é capaz de viver nessa fúria lamacenta?, vê só onde deixaram o mundo. Tens que fazer qualquer coisa, filho. Não te deixes levar por estes filhos da puta. Foi isto que ele me disse, no último olhar. E eu gostaria que isto fosse ficção, mas não é. Respirei o ar da morte e afundei-me naquele sofá, à espera que um vórtice se abrisse e o tempo andasse para trás. Mas não anda, para trás ou para diante, a não ser que Prometeu seja um labrego de tractor e se recuse a mexer o rabo. E é este o nosso desafio: ler nos olhos de quem nos deixa e tentar ver as grutas de Altamira, sonhos de um mundo justo e relações entre pessoas que não sejam mediadas pelo afã de saber exactamente quanto devemos uns aos outros. Se, um dia, puder dever tudo a todos sem preocupar-me com quanto devo, este universo será menos perverso. E talvez possamos olhar as estrelas, fazer amor com o tecto celeste, achar-lhes a lógica e sentir a história de mil mulheres entrar-nos no corpo, ali rodeados de ulmeiros milenares, ou salgueiros, quem sabe que árvores?, para voltarmos a saber o que é maravilharmo-nos com silêncios e sussurros. Se dois mil e doze for isto, se puder ver grutas de Altamira nos olhos de quem vir partir e o fim da Terra nos olhos de quem chegar, pode ser que ainda cá esteja no dobrar da alvorada.