04/06/2013

"Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar."

Como é que se Esquece Alguém que se Ama?
Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'

"Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?
As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar.
É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si , isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução.
Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha.
Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado.
O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar."

03/06/2013

02/06/2013

Discos IV

I

Sempre fui desajeitado com os meus discos. De uma maneira ou de outra, consigo deixá-los cair, riscá-los ou rasgar-lhes as capas - às vezes, um rasgo pequeno, imperceptível; outras, um rasgo que destroça o valor estético da capa. Isto sucede, especialmente, com os discos de que gosto mais; são os discos que me levam a ter cuidados particulares com a colocação da agulha e, invariavelmente, a falhar. Não sei por que razão isto acontece. Procuro usar de cuidados especiais e raramente resulta; o braço do gira-discos resvala, grãos de pó invisíveis perturbam a agulha ou um movimento incauto faz trepidar o móvel onde o gira-discos repousa.

Talvez seja por isto que esses discos são sempre os primeiros a desaparecer, subtis, porque as pilhas de tralha escondem o seu brilho e não consigo dar conta da sua desaparição. Só muito mais tarde, só tarde demais, quando não posso preparar-me para delinear o espaço vazio, é que me apercebo de uma falha, três milímetros a menos por ali, e tenho mais uma colina íngreme a percorrer.

Não há discos substituíveis. Cada um tem a sua história; cada um tem as suas mágoas. Desajeito-me com os meus discos favoritos e, às vezes, esqueço-os; e, às vezes, isso tem consequências. Às vezes, retenho apenas as memórias dos riscos e dos rasgos, esquecendo a música, o segredo quente-rico-denso, aquilo que faz dos meus discos preferidos insubstituíveis e preciosos.

II

Sempre fui desajeitado com as minhas pessoas-canção. Mas é aqui que a analogia atinge os seus limites. Porque um rasgo na capa de um disco de vinil é apenas tão dolorosa quanto eu quiser que ela seja: até hoje, o vinil não adquiriu consciência de si e não parece importar-se com o desvanecer das cores da capa ou com os riscos que lhes causarmos. O vinil só se magoa se quisermos dar-lhe esse beneplácito. As pessoas-canção, sendo pessoas, sendo mares de textura e ritmo, sentem precisamente a dor que sentem, e não necessitam do beneplácito de alguém para senti-la.

Quando se é desajeitado com as pessoas-canção, com as pessoas-música, como eu, e demasiadas vezes sem ter outra razão além de uma ignorância profunda acerca do lugar que se ocupa no mundo e da capacidade inaudita que temos para a crueldade involuntária, também como eu, este é um dado que devemos tratar com cuidado. Não somos desajeitados com um propósito destruidor e merecemos esse benefício; mas a nossa desajeitação não nos confere mais que esse benefício. E os efeitos dessa desajeitação ficam gravados nas relações, gostemos ou não deles, queiramos ou não reconhecê-los. É importante reconhecer isto. Porque todas as relações, especialmente aquelas que nos fazem ver o mundo a cores, ou com mais cores, ou com mais brilho, têm um limiar de segurança que nunca deve ser ultrapassado.

Tal como um disco demasiado riscado, uma relação demasiado riscada torna-se inaudível e ininteligível. A tribo dos desajeitados faria bem em lembrar-se disto: podemos inventar mil e dois labirintos, filmes, justificações e diatribes; podemos recorrer à desajeitação como razão para darmos golpes nas relações que nos obrigam a rever todos os pergaminhos que vamos escrevendo como mapa-vida; mas o resultado final não muda. O resultado final é sempre doloroso e, nessa altura, "ser desajeitado" serve de pouco. A eternidade não resolve. Só temos uma vida para ouvir estas canções. Só temos uma vida para cuidar delas - há um verbo inglês que encapsula tudo isto, cherish - to treat with tenderness and affection; to nurture with care; to protect and aid -, e é essa vida que precisa de ser vivida.

III

É fácil riscar demasiado um disco de vinil. É por isso que pegamos em discos usados e usamos a luz artificial (se tivermos sorte, a luz solar) para ver riscos e outros defeitos na superfície do disco; se os sulcos originais, a memória física do som, estiverem demasiado cobertos por riscos fortuitos, negligentes, maliciosos ou apenas cruéis, já não queremos o disco. Colocar um disco desses no nosso gira-discos é uma experiência desagradável, a não ser que achemos, na dissonância, uma nova harmonia; nesse caso, os sulcos originais serão despiciendos e a nova memória física é aquela que resulta da fortuna, da negligência, da malícia ou apenas da crueldade. Mesmo desajeitado, não gosto desses discos. Falam de uma humanidade em que já não acredito.

E se fizermos parte dessa humanidade em que já não acreditamos? A questão fica menos clara. Sejamos desajeitados, então. Mas isso não me exime de olhar para a soma dos meus desajeitamentos e reconhecer que não são exactamente desajeitamentos e são demasiado volumosos, demasiado frequentes, para que possa dormir descansado na certeza de que faço parte dessa humanidade-luz cuja vocação é a de cuidar com ternura (essa palavra desprezada) e afecto (outra palavra desprezada), de alimentar, de proteger e apoiar. Porque as pessoas-música não desaparecem de forma subtil; notamos-lhes a perda de imediato, quanto mais não seja porque ocupam mais espaço físico e emocional; sabemos-lhes as curvas e não precisamos de uma agulha ou de um gira-discos, porque elas tocam por si e para si, e nós(eu) somos(sou) agraciado, de vez em quando, com aquele calor-densidade-riqueza, e nem nos(me) ocorre algo tão simples como equacionar a possibilidade de, amanhã, já não termos aquela canção por perto ou de já não sermos capazes de ouvi-la. E é isso que nos faz ver o mundo com menos cor, ou menos detalhe, ou menos brilho.

Mas não será apenas isso. Esse calor-densidade-riqueza só é possível se elas, as pessoas-música, não tiverem que sê-lo; só é possível se for igualmente impossível; só é possível se for opcional e não pudermos exigir. Esse é o cerne, mesmo que nos destrua por dentro. Não posso carregar mais na agulha para que o disco toque mais ou seja mais barulhento. Também não posso exigir mais calor-densidade-riqueza, mais som, melhor som, mais cores, mais brilho. Isso derrotaria o propósito de tudo isto. Isso faria das pessoas-canção feras enjauladas, Fúrias mitológicas à espera de desaparecer, não sem antes cobrarem o quinhão devido pela nossa(minha) violação de um acordo - porque as dádivas não se retribuem, aceitam-se; e podemos ser pessoas-música também, e oferecer tantas dádivas quanto desejarmos, mas essa já será outra história. Aquilo que importa é só isto: não deixar que a superfície das relações que estabelecemos, das relações que nos fazem ver a vida como um entrelaçado brilhante de constelações e outras coisas bonitas, ou com filtros fotográficos que não conheço mas gosto de ver porque transformam a imagem em algo vibrante e consigo, às vezes, imaginar a beleza do mundo com esse filtro nos olhos, ou como um momento passado a admirar a Vitória Alada (ou uma gargalhada partilhada porque não sabemos que um daguerreótipo jaz atrás de uma cortina e eu, feito parvo, finjo admirar o corte delicado da dita cortina, à medida que uma mão expedita se encarrega de me mostrar quão pouco talentoso para o snobismo e a crítica de arte sou, na verdade... dizia eu que aquilo que importa é não deixar que a superfície das relações que estabelecemos fique demasiado riscada ou ferida.

Mas nem sempre podemos impedi-lo. Porque somos desajeitados ou descobrimos uma crueldade involuntária da qual não sabemos fugir; porque nos debatemos com o gato de Schrödinger e o princípio da incerteza; porque o problema da causalidade cumulativa, quando se metem coisas emocionais, é que somos(sou) demasiado estúpidos(de acordo com a terceira lei de ouro da estupidez) para reconhecer o problema na origem e estancar a sangria.

Epílogo

quando o fogo já não arde
quando a fúria soçobra
quando o mundo escurece
de costas voltadas para o pó
de ombros escolhidos para a morte
quando a vida recobra
quando já é demasiado tarde
para que tudo recomece.

porque o vento adianta
porque a mágoa murmura
porque o cometa navega
de cabeça perdida no céu
de corpos tolhidos no mar
porque o perdão já não dura
porque o amanhã já não canta
e nós? [no fim e na entrega]