tag:blogger.com,1999:blog-39275267224246518732024-03-19T11:09:03.236-07:00A Arte de DivagarUnknownnoreply@blogger.comBlogger119125tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-51980151399198167952013-06-04T16:13:00.001-07:002013-06-04T16:13:40.923-07:00"Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar."<p dir=ltr><b>Como é que se Esquece Alguém que se Ama?</b><br>
Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'</p>
<p dir=ltr>"Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está? <br>
As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar. <br>
É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si , isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução. <br>
Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha. <br>
Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. <br>
O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar."</p>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-4102514254993539212013-06-03T02:01:00.002-07:002013-06-03T02:02:20.330-07:00Coyita ou os lugares vazios<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
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<br />
<iframe allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="http://www.youtube.com/embed/J0i_II_ssE8" width="560"></iframe>
<br />
<br />
um nó na garganta (dois-três-mil), braços em fogo, um lugar vazio e olhar ferrado no horizonte.</div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-51069962704810810512013-06-02T14:56:00.003-07:002013-06-02T14:56:41.647-07:00Discos IV<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
I<br />
<br />
Sempre fui desajeitado com os meus discos. De uma maneira ou de outra, consigo deixá-los cair, riscá-los ou rasgar-lhes as capas - às vezes, um rasgo pequeno, imperceptível; outras, um rasgo que destroça o valor estético da capa. Isto sucede, especialmente, com os discos de que gosto mais; são os discos que me levam a ter cuidados particulares com a colocação da agulha e, invariavelmente, a falhar. Não sei por que razão isto acontece. Procuro usar de cuidados especiais e raramente resulta; o braço do gira-discos resvala, grãos de pó invisíveis perturbam a agulha ou um movimento incauto faz trepidar o móvel onde o gira-discos repousa.<br />
<br />
Talvez seja por isto que esses discos são sempre os primeiros a desaparecer, subtis, porque as pilhas de tralha escondem o seu brilho e não consigo dar conta da sua desaparição. Só muito mais tarde, só tarde demais, quando não posso preparar-me para delinear o espaço vazio, é que me apercebo de uma falha, três milímetros a menos por ali, e tenho mais uma colina íngreme a percorrer.<br />
<br />
Não há discos substituíveis. Cada um tem a sua história; cada um tem as suas mágoas. Desajeito-me com os meus discos favoritos e, às vezes, esqueço-os; e, às vezes, isso tem consequências. Às vezes, retenho apenas as memórias dos riscos e dos rasgos, esquecendo a música, o segredo quente-rico-denso, aquilo que faz dos meus discos preferidos insubstituíveis e preciosos.<br />
<br />
II<br />
<br />
Sempre fui desajeitado com as minhas pessoas-canção. Mas é aqui que a analogia atinge os seus limites. Porque um rasgo na capa de um disco de vinil é apenas tão dolorosa quanto eu quiser que ela seja: até hoje, o vinil não adquiriu consciência de si e não parece importar-se com o desvanecer das cores da capa ou com os riscos que lhes causarmos. O vinil só se magoa se quisermos dar-lhe esse beneplácito. As pessoas-canção, sendo pessoas, sendo mares de textura e ritmo, sentem precisamente a dor que sentem, e não necessitam do beneplácito de alguém para senti-la. <br />
<br />
Quando se é desajeitado com as pessoas-canção, com as pessoas-música, como eu, e demasiadas vezes sem ter outra razão além de uma ignorância profunda acerca do lugar que se ocupa no mundo e da capacidade inaudita que temos para a crueldade involuntária, também como eu, este é um dado que devemos tratar com cuidado. Não somos desajeitados com um propósito destruidor e merecemos esse benefício; mas a nossa desajeitação não nos confere mais que esse benefício. E os efeitos dessa desajeitação ficam gravados nas relações, gostemos ou não deles, queiramos ou não reconhecê-los. É importante reconhecer isto. Porque todas as relações, especialmente aquelas que nos fazem ver o mundo a cores, ou com mais cores, ou com mais brilho, têm um limiar de segurança que nunca deve ser ultrapassado.<br />
<br />
Tal como um disco demasiado riscado, uma relação demasiado riscada torna-se inaudível e ininteligível. A tribo dos desajeitados faria bem em lembrar-se disto: podemos inventar mil e dois labirintos, filmes, justificações e diatribes; podemos recorrer à desajeitação como razão para darmos golpes nas relações que nos obrigam a rever todos os pergaminhos que vamos escrevendo como mapa-vida; mas o resultado final não muda. O resultado final é sempre doloroso e, nessa altura, "ser desajeitado" serve de pouco. A eternidade não resolve. Só temos uma vida para ouvir estas canções. Só temos uma vida para cuidar delas - há um verbo inglês que encapsula tudo isto, <i>cherish - to treat with tenderness and affection; to nurture with care; to protect and aid -, </i>e é essa vida que precisa de ser vivida.<br />
<br />
III<br />
<br />
É fácil riscar demasiado um disco de vinil. É por isso que pegamos em discos usados e usamos a luz artificial (se tivermos sorte, a luz solar) para ver riscos e outros defeitos na superfície do disco; se os sulcos originais, a memória física do som, estiverem demasiado cobertos por riscos fortuitos, negligentes, maliciosos ou apenas cruéis, já não queremos o disco. Colocar um disco desses no nosso gira-discos é uma experiência desagradável, a não ser que achemos, na dissonância, uma nova harmonia; nesse caso, os sulcos originais serão despiciendos e a nova memória física é aquela que resulta da fortuna, da negligência, da malícia ou apenas da crueldade. Mesmo desajeitado, não gosto desses discos. Falam de uma humanidade em que já não acredito.<br />
<br />
E se fizermos parte dessa humanidade em que já não acreditamos? A questão fica menos clara. Sejamos desajeitados, então. Mas isso não me exime de olhar para a soma dos meus desajeitamentos e reconhecer que não são exactamente desajeitamentos e são demasiado volumosos, demasiado frequentes, para que possa dormir descansado na certeza de que faço parte dessa humanidade-luz cuja vocação é a de cuidar com ternura (essa palavra desprezada) e afecto (outra palavra desprezada), de alimentar, de proteger e apoiar. Porque as pessoas-música não desaparecem de forma subtil; notamos-lhes a perda de imediato, quanto mais não seja porque ocupam mais espaço físico e emocional; sabemos-lhes as curvas e não precisamos de uma agulha ou de um gira-discos, porque elas tocam por si e para si, e nós(eu) somos(sou) agraciado, de vez em quando, com aquele calor-densidade-riqueza, e nem nos(me) ocorre algo tão simples como equacionar a possibilidade de, amanhã, já não termos aquela canção por perto ou de já não sermos capazes de ouvi-la. E é isso que nos faz ver o mundo com menos cor, ou menos detalhe, ou menos brilho.<br />
<br />
Mas não será apenas isso. Esse calor-densidade-riqueza só é possível se elas, as pessoas-música, não tiverem que sê-lo; só é possível se for igualmente impossível; só é possível se for opcional e não pudermos exigir. Esse é o cerne, mesmo que nos destrua por dentro. Não posso carregar mais na agulha para que o disco toque mais ou seja mais barulhento. Também não posso exigir mais calor-densidade-riqueza, mais som, melhor som, mais cores, mais brilho. Isso derrotaria o propósito de tudo isto. Isso faria das pessoas-canção feras enjauladas, Fúrias mitológicas à espera de desaparecer, não sem antes cobrarem o quinhão devido pela nossa(minha) violação de um acordo - porque as dádivas não se retribuem, aceitam-se; e podemos ser pessoas-música também, e oferecer tantas dádivas quanto desejarmos, mas essa já será outra história. Aquilo que importa é só isto: não deixar que a superfície das relações que estabelecemos, das relações que nos fazem ver a vida como um entrelaçado brilhante de constelações e outras coisas bonitas, ou com filtros fotográficos que não conheço mas gosto de ver porque transformam a imagem em algo vibrante e consigo, às vezes, imaginar a beleza do mundo com esse filtro nos olhos, ou como um momento passado a admirar a Vitória Alada (ou uma gargalhada partilhada porque não sabemos que um daguerreótipo jaz atrás de uma cortina e eu, feito parvo, finjo admirar o corte delicado da dita cortina, à medida que uma mão expedita se encarrega de me mostrar quão pouco talentoso para o snobismo e a crítica de arte sou, na verdade... dizia eu que aquilo que importa é não deixar que a superfície das relações que estabelecemos fique demasiado riscada ou ferida.<br />
<br />
Mas nem sempre podemos impedi-lo. Porque somos desajeitados ou descobrimos uma crueldade involuntária da qual não sabemos fugir; porque nos debatemos com o gato de Schrödinger e o princípio da incerteza; porque o problema da causalidade cumulativa, quando se metem coisas emocionais, é que somos(sou) demasiado estúpidos(de acordo com a terceira lei de ouro da estupidez) para reconhecer o problema na origem e estancar a sangria.<br />
<br />
Epílogo<br />
<br />
quando o fogo já não arde<br />
quando a fúria soçobra<br />
quando o mundo escurece<br />
de costas voltadas para o pó<br />
de ombros escolhidos para a morte<br />
quando a vida recobra<br />
quando já é demasiado tarde<br />
para que tudo recomece.<br />
<br />
porque o vento adianta<br />
porque a mágoa murmura<br />
porque o cometa navega<br />
de cabeça perdida no céu<br />
de corpos tolhidos no mar<br />
porque o perdão já não dura<br />
porque o amanhã já não canta<br />
e nós? [no fim e na entrega]</div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-38353998587290693842013-05-29T15:45:00.000-07:002013-05-29T15:45:22.032-07:00Inércia<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
São estas as rochas inertes<br />
em que debatemos o mundo.<br />
<br />
São estas as rochas inertes<br />
devedoras da vida.<br />
<br />
São estas as rochas inertes<br />
imersas em fúria vencida.<br />
<br />
São estas as rochas inertes<br />
vencedoras do universo profundo.<br />
<br />
Em que cortamos as sementes do novo,<br />
porque não vogamos à velocidade das rochas,<br />
e olhamos a inércia em fugas derrotadas<br />
(pelas dobras dos olhos fechados).<br />
<br />
São estas as rochas inertes<br />
onde morrem histórias fechadas.<br />
<br />
Em que debruamos o destino<br />
a golpe de mágoas separadas<br />
(pelo trilho de passos despidos).<br />
<br />
São estas as rochas vazias<br />
onde revemos todos os instantes<br />
[vividos]<br />
<br />
São estas as rochas caladas<br />
onde revemos todos os erros<br />
[incorridos]<br />
<br />
Foram aquelas as rochas inertes<br />
onde admitimos o silêncio<br />
onde recuperámos a perda<br />
onde respirámos fundo,<br />
<br />
para esquecer todas as sílabas sincopadas<br />
e fingir que não desenhamos as nossas formas<br />
[desesperadas]<br />
enquanto te sentas, à espera de uma fábula.<br />
[adeus, é desta?]<br />
<br /></div>
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Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-77457773210305899252013-05-21T18:13:00.000-07:002013-05-21T18:13:18.565-07:00Discos III<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<br />
E podemos descobri-las, a estas pessoas que são, feitas as contas, a banda sonora de uma vida bem vivida, uma vida excelente (se o Aristóteles não se enganou)? Podemos inventar um método ou uma estratégia para facilitar a sua descoberta?<br />
<br />
Não, não podemos. Só podemos respeitar a nossa fisionomia. Uma boca, duas narinas, dois olhos e dois ouvidos. Passar demasiado tempo a falar implica não exercer faculdades olfactivas, visuais e auditivas. Passar demasiado tempo a falar significa que temos um modo rígido, pré-definido de interpretar a realidade. E é isso que nos impede de ouvir o <i>groove, </i>o ritmo destas pessoas, destas pessoas ricas, densas e quentes que só podem sê-lo se forem opcionais, se tiverem sempre uma saída possível e nunca estiverem obrigadas por um contrato, formal-informal, a passar um número de minutos definido connosco.<br />
<br />
Reparo no carácter inerte dos meus discos. Não é comum que os discos de vinil vagueiem por aí, noctívagos ou diurnos. Também reparo no carácter inerte dos CD que restam por cá; na lista infindável de MP3 que se perdem por este computador adentro. Mas não posso tocar-lhes - não posso agarrar num CD e girá-lo entre as mãos para mudar de lado; posso trocar de MP3 com um toque no teclado e não preciso de prestar atenção à agulha enquanto troco de faixa. É sempre uma questão de cuidado, uma questão de afecto. Não podemos tratar um disco de vinil como tratamos um CD ou um MP3; é uma memória física que precisamos de tratar com delicadeza, não porque os discos exijam essa delicadeza, mas porque é uma das condições necessárias para que possamos respeitá-los como guardiães desse tal som misterioso, quente-rico-denso. E precisamos de tratá-los com delicadeza porque também é isso que faz do seu som algo mais que uma repetição de zeros e uns. São os seus rituais, os nosso rituais, que nos tornam próximos; são as coisas pequenas, como o grão de pó apanhado pela agulha, que tornam o som de um disco eternamente irrepetível. Nenhuma faixa pode ser repetida. Porque depende da forma como colocamos o disco no gira-discos (e do gira-discos em si mesmo); da forma como colocamos a agulha - a pressão, a aspereza (que pode riscar a superfície do disco e danificar-lhe a perfeição), a delicadeza com que a pousamos no disco; a atenção ao estroboscópio, para que o disco possa tocar por si e para si (e para nós, mas nunca para nós <i>em primeiro lugar</i>). São discos únicos e irrepetíveis porque não são representações digitais; são música em si, são canções em si.<br />
<br />
E é por aqui que vou. Os discos de vinil não estão nunca inertes. Estão sempre a tocar e só lhes colocamos a agulha para podermos ouvir o que tem para contar-nos. E talvez, se tivermos cuidado, possamos começar a perceber-lhes o carácter irrepetível, o facto de não podermos descobri-los (ou descobri-las), mas de serem eles (e elas) a descobrirem-nos também, ou de ser um processo de descoberta mútua, uma multitude de elementos irrepetíveis, como tocar uma faixa trezentas vezes seguidas sem que ela soe semelhante uma única vez, e deixar que seja essa delicadeza, a delicadeza do silêncio quando também precisamos de deixar um disco repousar (porque não podemos ouvi-lo para sempre, porque há sempre uma audição final, porque o disco pode ficar empanado e choramos porque sabemos que, apesar de podermos continuar a tentar ouvir, o som já não será quente-rico-denso, mas apenas uma memória cacofónica) e, se ele quiser, nunca mais ser ouvido.<br />
<br />
Todas as vidas têm uma banda sonora. Todas as bandas sonoras têm temas centrais. E esses temas centrais são sempre espaçosos, eloquentes, grandes e opulentos. Mas as bandas sonoras de uma vida são feitas de outras vidas, vidas de vinil, vidas que não são pilares, vidas que não podemos conceber como inevitáveis ou indispensáveis ou necessárias e suficientes. Essas vidas são a diferença entre uma banda sonora quente-rica-densa - uma vida quente-rica-densa - e uma banda sonora. Toda a gente tem uma. Toda a gente procura uma. Toda a gente tem medo de perdê-la, ou de perder uma pessoa-canção central para si. Raramente pensamos na gente-música que dá tonalidade às coisas fugazes e consegue torná-las menos fugazes, menos repetíveis, menos banais. E nem toda a gente tem medo de perder uma pessoa-canção que não se preocupa com a sua dispensabilidade; que se mantém ausente (embora as ausências também marquem tonalidades, também mudem o ritmo da banda sonora de que fazem parte) ou decide povoar outras paragens; que é demasiado subtil para quem passa demasiado tempo de ouvidos fechados e boca aberta; que é demasiado preciosa para ser preciosa, tem mais brilho porque se recusa a brilhar, é mais quente-rica-densa porque se recusa a ser mais quente-rica-densa. E, porque só pode ser isto tudo se puder ser opcional, se nunca pusermos condições e se nunca nos puser condições, é fácil - demasiado fácil - esquecê-la, ou refazê-la à medida do que as nossas vidas auto-centradas exigem. E, de repente, já não é uma pessoa-canção, mas o refugo de algo importante, mas eu já nem me lembro porque é que estás aqui, o teu prazo de validade venceu, já te dei uso e agora deito-te fora, afinal de contas porque é que és importante, diz lá?, e ela nunca tem resposta, porque não precisa de tê-la, nem de de dá-la, nem de inventá-la, porque nunca ser central é uma bênção maldita, porque ser um disco de vinil na era da velocidade maquinal significa que se recusa a ser dominada por gente obsessiva, e, mesmo que chore em privado (as canções também choram, e quem não acredita que vá ouvir Dylan), há muitas vidas por esse universo fora que precisam de um som quente-rico-denso.<br />
<br />
Sim, todas as vidas têm uma banda sonora. Não é que precisemos de música; não é que precisemos de discos de vinil; não é que precisemos de pessoas-canção. A verdade é que elas (a música, os discos de vinil e as pessoas-canção) também não precisam de nós para nada. E é por isso que não podemos descobri-las. São elas que nos descobrem. E são elas que decidem quando ficar e quando partir.<br />
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
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</div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-77008565806288439652013-05-17T16:43:00.002-07:002013-05-17T16:46:34.181-07:00Discos II<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
Portanto, se não damos conta, porque não prestamos atenção, porque elas, as nossas pessoas-disco, os nossos discos de vinil, nem sequer pretendem ser essenciais a um sorriso, talvez seja possível viver sem elas. E tem de ser possível, porque, tal como podemos viver sem ler Proust, sem ouvir um <i>riff </i>de Hendrix, sem ir a um cinema ver o <i>2001</i> ou o <i>Lawrence da Arábia</i>, também podemos viver sem estas pessoas, não é?<br />
<br />
Talvez. Talvez não. Talvez a sua ausência seja umas das razões pelas quais nos sentimos ocos, muitas-demasiadas vezes, apesar de estar tudo em perfeita simetria harmónica-impenetrável-ardente. Mas não podemos dar-nos conta, porque não sabemos que o segredo de uma vida bem vivida está nesses pequenos incrementos, no som mais rico-mais quente-mais denso, e não nas grandes vitórias inefáveis e grandiosas, e não nas pessoas grandes, nas pessoas gigantes, nas pessoas que ocupam o tecido espácio-temporal até não caber mais nada, nas pessoas que julgamos serem os nossos pilares e, na verdade, a bem-dizer, vamos lá a ver, isto é, afinal... são pilares-ilusão. E é nos nossos discos de vinil, nessas pessoas imperceptíveis, nessas pessoas que perdemos como quem perde um brilho irrisório no olhar, que navegamos.<br />
<br />
É, certamente, um <i>cliché</i>. Mas os <i>clichés </i>também têm uma história. E, parafraseando David Foster Wallace, os <i>clichés </i>são-no porque encerram verdades terríveis. E a primeira verdade terrível destes peculiares discos de vinil é a sua natureza finita e fugidia. E a segunda verdade terrível destes peculiares discos de vinil é a facilidade com que se ausentam, a facilidade com que nos vemos presos à vontade de buscá-los, persegui-los, porque sabemos que não desejamos possuí-los, nem tê-los, nem dominá-los. Desejamos que eles toquem por si e nos façam fechar os olhos, porque ficamos embevecidos quando se deixam pousar, por um instante esquecidos da sua ausência, esquecidos de serem finitos e fugidios. E são música porque existem e não porque tocam para nós ou por nós, não é? Terceiro <i>cliché</i>. Eu nunca quis um disco de vinil (dos redondos ou dos peculiares) que tocasse para mim.<br />
<br />
E talvez seja essa a razão pela qual fenecem e são fugidios (os peculiares); porque, a partir do instante em que pretendemos domá-los, retê-los, torná-los propriedade privada, deixam de ter o som rico, quente, denso que os torna preciosos. Passam a ser lâminas afiadas e um punhal apontado a si mesmos (a nós, portanto). Quarto <i>cliché</i>. São indispensáveis enquanto puderem ser dispensáveis. Só tornam a nossa vida mais viva se puderem <i>não </i>torná-la mais viva. Só tornam a nossa vida mais preciosa se puderem evaporar-se e não estar ali, no último instante onde os vimos.<br />
<br />
Sim, talvez seja isso que os torna frágeis. E talvez seja isso, também, que nos torna quebradiços; talvez seja essa a diferença entre <i>agape </i>e <i>phileos</i>. Mesmo que, a cada compasso, sintamos ter perdido um som irrepetível.</div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-15893415057989838702013-05-12T14:40:00.002-07:002013-05-13T03:45:52.434-07:00Discos<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
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<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEge_8_6YCG5IAxP2E0VpDY42jxAZUMVO24ktIBYBa0rT8Kbpzsmhoc4OBT0f_iVF4BoQvaEFLR2I7K4rSreMLk0GtcImnlIA1Bn70DlWC-jbsydkMSHznM5WN2YsxkbyaTxjq6vUXziCQQ/s1600/912136_10151539035899061_64330078_n.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="182" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEge_8_6YCG5IAxP2E0VpDY42jxAZUMVO24ktIBYBa0rT8Kbpzsmhoc4OBT0f_iVF4BoQvaEFLR2I7K4rSreMLk0GtcImnlIA1Bn70DlWC-jbsydkMSHznM5WN2YsxkbyaTxjq6vUXziCQQ/s400/912136_10151539035899061_64330078_n.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
Afago o disco e sinto os sulcos que a agulha percorre, vibrando, para produzir sons. Fecho os olhos e deixo que a textura negra entre cá dentro. Faço de conta que o meu indicador é uma agulha. Abro os olhos e vejo o gira-discos, inerte. Pauso e penso em todos os discos que me esperam, e numa loja de discos que bem pode ser a fonoteca de Babel.<br />
<br />
E penso numa pessoa que me põe a considerar a diferença entre ouvir um disco de vinil e um CD. Como todos os amantes do vinil, sinto o som mais quente, mais cheio, mais denso. Não creio, contudo, que os meus ouvidos sejam suficientemente sensíveis para perceber a diferença. Sei que, ao ouvir o som digital, penso ouvir algo mais frio e impessoal; e percebo que isso pode dever-se ao facto de ser uma tradução em bits da informação que, no vinil, é fisicamente inscrita na superfície do disco. Mas também sei que, salvo algumas excepções honrosas, o ouvido humano não consegue distinguir fundamentalmente entre uma gravação digital feita por um engenheiro competente e uma gravação analógica feita por um engenheiro igualmente competente.<br />
<br />
Bem vistas as coisas, o CD é, provavelmente, mais conveniente que o disco de vinil. É mais pequeno, potencialmente eterno e, se a gravação tiver uma qualidade muito elevada, o som pode ser mais detalhado. O disco de vinil é mais frágil, mais pesado, maior e tem um número limitado de rotações (mesmo que, para efeitos práticos, esse número possa nunca vir a ser atingido, ele existe).<br />
<br />
Mas não é isso que nos interessa, pois não? Volto a pensar na tal pessoa. E nas coisas que a vida nos ensina. E nas coisas que sentimos ao tocar numa capa, cumprir o ritual de tirar o disco do <i>sleeve</i>, colocá-lo no gira-discos e, com a gentileza de que formos capazes, colocar a agulha no sítio certo para que não se oiçam rasgos, silêncios ou marcas na superfície.<br />
<br />
Para que é que precisamos disto, se a qualidade do som está na nossa cabeça e não na superioridade objectiva? Para que é que precisamos disto, se o CD chegava?<br />
<br />
E verto a pergunta. Para que é que precisamos de algumas pessoas na nossa vida, se elas não são objectivamente necessárias à satisfação das nossas necessidades e, frequentemente, também não são necessárias à procura de sentido, à procura da felicidade, à procura de tudo aquilo que buscamos?<br />
<br />
A resposta está num disco de vinil, penso por agora. Não precisamos de um disco de vinil para ouvir música. Nem sequer precisamos de um disco de vinil para apreciar música ou um detalhe mais ou menos subtil. Mas quem gosta genuinamente de coleccionar discos percebe aquilo que me passa pela cabeça.<br />
<br />
Essa não é a questão. Nós fechamos os olhos e cheiramos as capas de discos velhos e novos; nós passamos horas a observar algumas das maiores obras de arte da história da música que ficaram na capa dos nossos LPs; nós tiramos o disco do <i>sleeve </i>com todo o cuidado porque é um ritual; nós pousamos o disco no <i>slipmat </i>como se fosse um sacramento; nós calibramos o braço do nosso gira-discos durante horas porque achamos que sim, isso fará diferença; nós gostamos de cada raspadela e vibração estranha da agulha. Nós não passamos por cima das canções; quando um disco começa, só tiramos a agulha para pousar o braço no suporte, mudar de lado e continuar.<br />
<br />
É isso que torna o disco de vinil diferente. E é isso que torna o som mais quente, mais cheio, mais denso. Podia perfeitamente gravar um CD com ficheiros <i>lossless</i>, talvez MP3 com um <i>bitrate</i> elevado, e talvez não desse por nada. Mas não teria cumprido nenhum destes rituais. Não teria tido que montar o meu gira-discos e calibrá-lo; não teria o prazer de olhar para tudo o que uma capa nos dá.<br />
<br />
Penso de novo em quem me fez cismar nisto. E penso que não saberia explicar-lhe isto de forma compreensível. Que, a bem dizer, há pessoas dispensáveis da nossa vida e, às vezes, num pestanejar, deixam de ser dispensáveis e passam a ser ausências. Como os discos de vinil, porque dão mais trabalho, porque não são estritamente necessárias, porque nem sequer se importam de estar ausentes e, por vezes, até promovem a sua ausência (com a nossa colaboração) - porque temos tanto em que pensar, e as aparelhagens, agora, deixam-nos passar por cima das canções de que não gostamos. Um pouco como a vida que levamos: já não temos espaço para isto, dá demasiado trabalho e, ainda por cima, nem sequer é estritamente necessário. O CD é mais pequeno, mais portátil, menos inconveniente; o MP3 nem sequer ocupa espaço físico e podemos guardar milhões de ficheiros nos nossos portáteis, nos nossos iPods, nos nossos smartphones. Se não prestarmos atenção e se não quisermos perder tempo, se não quisermos passar horas a calibrar braços e a substituir agulhas, se não quisermos passar horas a afagar a superfície de discos e a sentir o cheiro a tinta e papel das capas, não precisamos de fazê-lo. Não temos que fazê-lo. E continuamos a poder ouvir música; continuamos a poder apreciá-la. Será, apenas, menos rica. Como, muitas vezes, não prestamos atenção, nem sequer damos conta.<br />
<br />
Mas são essas pessoas, pessoas como aquela que me fez escrever isto, que tornam as nossas vidas mais quentes, mais cheias e mais densas. São essas pessoas que nos fazem tropeçar em tesouros (são elas os tesouros). Essas pessoas são como as capas dos discos de vinil; são como os sulcos que sentimos nos discos antes de, com cuidado, colocarmos a agulha na sua superfície; e deixamos que o seu som, rico e quente, nos sirva de anjo da guarda.<br />
<br />
Se a minha vida fosse música, essas pessoas seriam os meus discos de vinil.</div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-68892617989743078302013-05-09T17:43:00.000-07:002013-05-09T17:43:01.375-07:00fogo fátuo<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
temos sonhos<br />
que (às vezes?) ardem - na bruma<br />
temos dúvidas<br />
e (às vezes?) crepitam - na noite<br />
temos memórias<br />
e (nunca?) tropeçam - no tempo<br />
porque somos de sangue<br />
feitos de sonhos e de bruma<br />
clarões de dúvidas e de noite.<br />
<br />
mas não somos de cinza<br />
(ainda sabemos o horizonte)<br />
mas não somos faúlhas<br />
(ainda desfazemos o destino)<br />
mas não somos fogueiras<br />
(já não gravamos ilusões).<br />
<br />
e temos florestas<br />
que nos submergem<br />
(somos seres antigos)<br />
e somos pespontos nas estrelas<br />
que nos trespassam o mundo<br />
(somos ruínas de poemas),<br />
<br />
porque persistimos e somos arestas<br />
no fado reservado para as árvores<br />
das florestas que temos<br />
dos pespontos que somos,<br />
das ilusões que não gravamos,<br />
e esquecemos o céu<br />
e implodimos em luz<br />
e renascemos todos os dias<br />
em todas as ruas.<br />
<br />
porque bastam agulhas<br />
para que nos trespassem o peito<br />
porque basta um gesto<br />
para que nos afundem o mar<br />
damos tudo (e somos tudo)<br />
para que a perfeição nos ensombre<br />
porque seremos engolidos pela sombra,<br />
porque devemos arder<br />
para que algo renasça.<br />
<br />
fogo fátuo e firme,<br />
porque somos espelhos partidos<br />
de maldições abjuradas;<br />
porque nós não temos futuro,<br />
mas encolhemos os ombros, um por um,<br />
porque o fogo-fátuo<br />
não carrega esperanças<br />
(goradas).<br />
<br /></div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-41274034846034014502013-04-28T10:22:00.000-07:002013-04-29T04:27:34.281-07:00Silêncio<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
"...)Sim, eu quero saber". "O quê? O que queres saber?". "Qual é a medida da solidão, como é que posso medi-la, quantificá-la e torná-la estanque, para que não volte a ameaçar-me". "A medida da solidão? Como se a solidão pudesse ser medida. É uma impressão, aludes-lhe indirectamente, nunca a vês, não a cheiras, não a saboreias nem lhe defines o contorno. É que, para ser possível medi-la, seria necessário desmontá-la. E não podes descobrir o que é estar só, contrariar as tuas pulsões, o teu anti-eremitismo, desvendando a "medida". "Não. Isso é uma mistificação. Posso medi-la; se posso defini-la, também posso estabelecer a quantidade ideal". "Não, não podes. A não ser que estejas apto a incorporar a solidão, a torná-la o teu destino, ela iludir-te-á. É melhor assim. Não conseguimos viver sós. Está cá dentro, é uma urgência, como beber água, combatê-la, esventrá-la até que não nos ameace mais". "Vou medi-la. Vou torná-la tangível e compreendê-la. A medida da minha solidão é a quantidade de palavras que não digo, todos os dias. É o conjunto de silêncios indecifráveis que deixo em casa, e que me apanham desprevenido, em noites lentas. É o sentir-me surdo e esmagado". "Pois. Mas, a não ser que existas em dois universos, precisas de escolher". "O quê?". "Deixo essa descoberta para ti. É tarde, vou voltar para o armário onde tentaste trancar-me".<br />
<br />
<a href="http://ozeneaartededivagar.blogspot.pt/2010/02/blog-post.html">Daqui.</a> 9 de Fevereiro de 2010. Três anos depois, tudo mudou. (Ou nada mudou). E esta frase continua a assombrar-me. "A medida da minha solidão é a quantidade de palavras que não digo, todos os dias. É o conjunto de silêncios indecifráveis que deixo em casa (...)". Porque foi aí, nesses silêncios, que comecei a perder-me.<br />
<br />
<br /></div>
<div class='separator' style='clear: both; text-align: center;'> <a href='https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjAdk84vfi87pTJLsM3Q_9QejaK2CoBi_g33wzUvIehxKVHHhqappjB_mUm1yC-S5LMHi9I49yWHIiqH4BOCGbxWbkY93HgynAcpHMZusah2JitGY8zdI81uvyvYdmmzL4C3HUFIcVuOCU/s1600/waiting-for-bus_sherboune_3_high-con_bw_01.jpeg' imageanchor='1' style='margin-left: 1em; margin-right: 1em;'> <img border='0' src='https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjAdk84vfi87pTJLsM3Q_9QejaK2CoBi_g33wzUvIehxKVHHhqappjB_mUm1yC-S5LMHi9I49yWHIiqH4BOCGbxWbkY93HgynAcpHMZusah2JitGY8zdI81uvyvYdmmzL4C3HUFIcVuOCU/s640/waiting-for-bus_sherboune_3_high-con_bw_01.jpeg' /> </a> </div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-31708067751963564222013-04-28T01:45:00.001-07:002013-04-28T01:48:16.589-07:00Arquipélago<p dir=ltr><i>Revisitando e reconsiderando</i>,<i> em dias de tristeza e recobro longínquo</i></p> (2007)
<p dir=ltr>o meu coração é um arquipélago <br>
(antigo)<br>
de ilhas encantadas</p>
<p dir=ltr>uma <u>solidão</u><br>
de ilusões separadas</p>
<p dir=ltr>vagueia pelo mundo esquecido,<br>
sonho duro de inquietude</p>
<p dir=ltr>não está nu, todavia;<br>
é antigo<br>
não enfermo</p>
<p dir=ltr>e não pode afogar-se em mágoa,<br>
pois que se encantou</p>
<p dir=ltr>é todavia possível<br>
que este arquipélago antigo<br>
iluda a morte<br>
com o seu sorrir de histórias<br>
(murmuradas)</p>
<p dir=ltr>o meu coração é um velho vacilante<br>
de mil vozes enlevadas.</p>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-37173593737477780722012-11-29T17:05:00.002-08:002012-11-29T17:05:51.675-08:00Futuro, parte I(para uma filha que ainda quero ver nascer)<br />
<br />
Ainda não nasceste e já te quero pedir desculpa. Quero pedir-te desculpa porque, provavelmente, não verás o mundo que conheci. Não é o melhor dos mundos. Todos os dias se anunciam novas catástrofes naturais e artificiais. Todos os dias surgem novos focos de conflito. A cada hora, morrem crianças e sofrem mães. Mas ainda é um mundo onde podemos viver, pensar, sentir, e desenhar. Esta parte do mundo, pelo menos. Este quinhão que te quero deixar, cheio de defeitos e coisas belas.<br />
<br />
Ainda não nasceste e já te quero prometer muita coisa. Nunca é bom sinal. Se prometo a esta distância e não sei se posso cumprir, levanta o sobrolho e duvida. Se o fizeres, ficarei feliz. Duvida. Nunca deixes a dúvida sair-te do corpo. Nunca deixes que te convençam de que duvidar é mau ou que hesitar é sinal de fraqueza. Pelo contrário. Ter dúvidas é sinal de humanidade e hesitar significa que pensas. Nunca deixes de pensar. Nunca permitas que te digam "pensas demais" ou "levas tudo demasiado a sério". Só os fanáticos têm certezas absolutas além do amor que sentem.<br />
<br />
Ainda não nasceste e quero dizer-te que lutei. Lutei para que tivesses o direito a pensar por ti. Lutei para que pudesses gritar quando discordas. Provavelmente não o fiz da melhor forma, porque esta época é escura, é um breu completo, e não sabemos quando terminará. Ainda podemos ir a hospitais sem empenharmos as nossas vidas, mas já não sabemos se poderemos tratar cancros sem encher os bolsos a facínoras que riem ao comparar o negócio da saúde ao das armas. Ainda podemos entrar em escolas sem ter de pagar, embora tenhamos que pagar as nossas universidades e o nosso conhecimento. Porque educar, formar e treinar não são direitos fundamentais, neste mundo; aqui, o direito ao lucro (ainda) tem mais força. Porque nem toda a gente percebe que é importante toda a gente gozar de saúde plena e de uma inteligência vivaz. Porque há gente, se lhes posso chamar assim, que anseia por um mundo tenebroso e injusto, um mundo onde pessoas sofrem porque não têm moedas para comprar água e livros. Espero que continues a lutar contra estes facínoras. Eles e elas andarão por aí quando leres isto. Eles e elas andam sempre por aí. É uma lição dura: se queremos um mundo livre, é preciso aceitar quem odeia a liberdade e constrói altares de vidro a deuses de papel. Mas, quero acreditar, poderás encostar o ombro àqueles que amas e construir. Ter uma ideia e fazer algo de novo. Não consigo imaginar-te nada, porque não imagino profissões, apenas estados de espírito. Imagino-te desafiante e inquieta. Imagino-te de voz firme. Imagino-te de viagens a todos os países desta terra. E imagino-te de cabelos longos e rebeldes, olhos semicerrados e cristalinos, pensativos como os meus, risonhos como... os de alguém.<br />
<br />
Ainda não nasceste e já te quero cheia de utopias. Não quero que desprezes as utopias. Foram maltratadas e não podem sê-lo. Também não podemos exagerá-las. Só podemos usá-las para caminhar, como disse alguém. São muletas e aguarelas para colorir todos os sonhos que engendramos. É para isso que servem. Quando te oferecerem uma utopia, duvida. Constrói a tua. Se te disserem que és utópica, toma-o como elogio e concorda. Nunca digas que és realista ou pragmática como resposta. Ninguém é realista sem ter a nostalgia de uma utopia. Ninguém tem pragmatismo se não sonhar à noite. As utopias são muletas que nos dão firmeza. Mas nunca cesses de duvidar.<br />
<br />
Ainda não nasceste e já quero agradecer-te. Estou a escrever para ti sem ter a certeza de que estarás comigo. Mas sei que serás uma bênção. Apesar de haver quem te queira reduzir a uma folha de cálculo. Quando te quiserem fazer isto, grita. O futuro não é uma pilha de folhas de cálculo. O futuro é uma muralha de almas em chamas.<br />
<br />
(...)Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-8419412557024093642012-11-25T19:15:00.002-08:002012-11-25T19:29:54.463-08:00Why do we keep going in the age of austerity?Why do I fight in the face of certain defeat?<br />
<br />
This is the question that thunders at night, during those long dark hours when all the time in the world flows through bedsheets and my body wanders in search of another body long gone. Because I kept fighting. Because we suffer together and we keep looking. We keep looking at the stars in search of different stories, different stars.<br />
<br />
Why do I fight if I am certain we will end up shedding tears, perhaps blood? Why do I struggle if it is all meaningless? Why do we keep marching with no end in sight? Why are we chanting if perfectly bound to oblivion?<br />
<br />
If we are to face defeat, wouldn't it be more rational, more reasonable even, to give up and embrace the spoils of war that we become by shedding our illusions? By signing statements saying "I, citizen X, hereby declare my utopian dreams dead and buried. I recognize my vision of human brotherhood to be wrong and allow my dreams to be burned at a stake specifically designed for dreams", and thereby recognizing our helplessness and realistic assessment of reality (even though reality is no longer realistic), wouldn't we be happier? Wouldn't our lives be wholesome then? Wouldn't our fears wither away? Wouldn't our frustrated desires, our ideas, our gestures and grandeurs, also wither away to the burial grounds of great ideas, sand-like statues, leave us lighter and freer, free to pursue ventures within correct and normal boundaries?<br />
<br />
Why then do I fight? Why do I keep going? Why have these last four years turned me into ashes and from the ashes I have been reborn, not as phoenix but as an ever more resilient man? Why do we keep going in the age of austerity?<br />
<br />
I keep going because I cannot stop believing. There must be something else out there. There must be a future where we do not exploit each other for kicks and we make mistakes but apologize and go on. There must be a future where we're able to speak without feeling constrained or being constantly afraid. There must be a future without fear of fellow beings. There must. Even if it were simply a matter of possibility, I would keep going. Because we build our paths along the way. Because we keep going in search of something else and we might end up building our destination simply by looking for it.<br />
<br />
I keep going because I cannot bear the thought of leaving an ashen world to my kindred spirits.<br />
<br />
I keep going because I believe in love and utopias and dreams and goodness and did I mention love?, and all those unspeakable moments when we raise our fists and sing, then we stand together against the brunt, the worst of them, and we resist, and we march, bloodletting be damned, they can't defeat us as long as all of us see that our collective soul glimmers in our eyes.<br />
<br />
I keep going because tears let us know we're still alive. I keep going because I have the right to madness and sadness and irrational belief in the flourishing of the children I see growing by my side. We have the right to madness and laughter. We have the right to beautiful, radiant things. Nobody has the right to take those things, those things our grandparents built with their bloody hand, their bloodstricken eyes, their warmest hearts. I have no right to let those things disappear.<br />
<br />
The age of austerity keeps us going. We will never know if we march because we want victory. Victory is a much too simple word to convey our beliefs. To encompass every thing we feel when nights are loss in thought, when nights are spent alone because love was not enough.<br />
<br />
I might end up lonely in a desert island, a single raspy voice in an old theater where an old movie plays endlessly. A single raspy voice who bore the brunt of cruel beings and refused to break apart, refused to forget warm embraces and kisses and acts of kindness. A single raspy voice, white hair and coarse skin, skin soaked in tears, but a solid heart, a good heart, a pulsating heart of heaven and glory and memories of chants and dignity. I keep going because I want to remember these years as those years where we never forgot we were human beings, human beings with souls. I keep going because I want to be that raspy voice lonely in a theater who still remembers what it was to love and be the guardian of a small piece of a huge, incomprehensible soul which resisted the night. I keep walking because that raspy voice wants to look to the sky and remember those days when we fought and maybe we were defeated but we never forgot laughter. And at the end we still knew home, we still were able to forgive and build. We fed our hungry hearts. I want to be a raspy voice who knows he fought valiantly because he believed and he cared and he tried. Even if he didn't reach utopia; even if he didn't land there. The raspy voice, the soft white hair, just wants to remember having tried. And that will be enough to make memories sweeter. To make it worthwhile. My raspy voice does not care whether we won, although it would like not to be lonely. But even if it is lonely, it will remember.<br />
<br />
This is why I keep going.Unknownnoreply@blogger.com0Utopia29.6152274 -99.526992629.3941439 -99.8428496 29.836310899999997 -99.2111356tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-60235273841580733592012-11-23T19:20:00.000-08:002012-11-23T19:20:07.928-08:00A rainbow, broken.It was then we asked ourselves. "Were we ever good people?", "Did we do as much as we could before turning into stone golems?", "Should we have been more gracious, less pitiful in our sorrows?".<br />
<br />
It was then we regretted not having regretted further. It was then, at that moment in the space-time continuum, we realized how torn asunder we became. It was too late but we tried to make it too soon. Because maybe perhaps things could have been will be might be different. Because grief shouldn't be an ocean, and in any event oceans shouldn't be salty, they should be sugary to make up for all the ugliness.<br />
<br />
It was then we remembered words forgotten, words never spoken, words that made sense before but lost their meaning while traversing the skies. It was then we remembered promises broken and kept, and dreams as detailed as embroidered wooden tulips, and looking up to the heavens hoping for whatever comes next, come what may and all that jazz, but then all we thought about was "were we ever good people?". No wooden flowers. Just acid rain. We remember Jay Williams, Ashley Jackson and people who slowed time down for us, when we had time to be slowed down for us, when time was not of the essence and had barely any place in us. It was then, as the moon rose and the sun set over the hill, we remembered Jay's thundering smoothness, "look out for your souls, they'll come back to claim what's rightfully theirs", as he guided the boat through the river, I can't remember if it was the Hudson or the Styx, if he was Jay the trumpet-player or Charon the rudder-singer. I just remember that back then I was we and you were we. And Jay whistled Kind of Blue while we thought of words unspoken, we tried to invent words, we tried to give names to fireflies, and Jay sang all over, and we were alone in the night but we never felt fuller.<br />
<br />
It was then we understood Oppenheimer. It was then we became death, the destroyer of worlds, this world we built over entire lifecourses, we resurrected and suspended time just to build it, then we dropped the "L" word, we became lost. And Ashley remembered us like two little orbs dancing, naming fireflies and deluding ourselves into eternity. Ashley knew better. We should have asked her if we were ever good people. I don't think we were. I wasn't. For all the flags waved, and all the chanting, and all the writing, let us change the world, let us bring utopia to the masses, let us quote Wilde and wax philosophical as we believe deeply in the revolution of angels dropping on earth, wings clipped but voices like heaven, they might be bearded but they bring good news, we're consuming ourselves for something, all is not lost, though we didn't comprehend at that time that for nothing to be lost all must be left behind, and we believed, oh how we believed, but that didn't stop us from thrusting the universe forward a thousand years and standing there and then, asking if we have ever been good people, decent people, people who are built statues and whose adventures are told in fables, people who are to be taught in schools even though kids don't give a shit about us.<br />
<br />
It was then we understood that we never felt welcome and that in order to feel welcome, we needed to stop feeling wanted. We needed to stop feeling. We needed to be better and stronger. We needed to be impervious and believe blindly, without sorrow, iron wills without love, because love is petty and kills eventually, it's a good drug, a lovely drug pun intended although not required, but it kills and should be forbidden to those of us who believe, who believe until it hurts, until it breaks us, and then I remember Jay's thunder, "your soul will return to claim its due; you can't sell it to a higher good; Casy and Joad are right, you don't have a soul, you're the guardian of a small, minuscule bit of a larger soul", just as he banked the boat leftward, the sea is almost there, now I'm reaching conscious thought, and I know grief is going to set me on fire, because I will rewrite this moment of then in a book of sand and carry it with me, I will carry it in my heart and still question my vengeance-seeking soul whether I was good people, whether I did good enough, whether I fought long and hard enough. I know the answer, we knew then the answer, when you suddenly slipped into the sugary ocean and I never saw you again. Ashley threw herself into the sky, then into the dark water, and Jay stood oblivious to it all, whistling "A Change is Gonna Come" like Sam Cooke reborn, and I kept on regretting turning into a stone golem. She disappeared. Perhaps I wanted this. Perhaps you wanted this. Perhaps I should blame it on you, since it was you who slipped, even if it was I who always felt unwelcome, even my footprints said sorry, my eyes always trying to run away in shame, even if my voice thundered with rage against injustice; the bottomless pit of our own personal darkness was always there and I had fell so deeply that nothing I did would ever rescue me, unless I saw beyond the dark and closed my eyes into light. Then it would fade and become a sugary ocean. The one you slipped into.<br />
<br />
It was then we forgot about everything because we had the power to remember. It was then we hated each other because we remembered how to cherish each other again. It was then we let go because we understood the difference between love and clinging. It was then I understood that I will never see two skies again, because when you watch the stars with someone you always look at several rays of light at once and hence it is impossible to see a single sky and single stars, it is always multiple skies and, because of that, a memory we can never complete without exchanging words or looks. If you had died, I would never be complete again, if only because right there we merged into a single memory, unrepetant.<br />
<br />
But now we stand, just before you slip into a sugary ocean, just after we forgot everything because we had remembered it, asking "were we ever good people?"<br />
<br />
I wasn't. Not good enough. Not close enough. Not hard enough. I was a rainbow, broken.<br />
<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-73750763578181086572012-09-25T15:43:00.002-07:002012-09-25T15:43:46.286-07:00Respeitinho<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://fbcdn-sphotos-h-a.akamaihd.net/hphotos-ak-snc6/c0.0.403.403/p403x403/262871_448950911813511_500184235_n.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" src="https://fbcdn-sphotos-h-a.akamaihd.net/hphotos-ak-snc6/c0.0.403.403/p403x403/262871_448950911813511_500184235_n.jpg" width="320" /></a></div>
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Ecos de Madrid. Ecos de podridão e bravura. Sons de fúria e retalhos de luz. Retiraram a força nas pernas a alguém cheio ou cheia de força onde interessa, no coração. Porque, leio algures, a maior força do mundo é a alma humana em chamas. Tirem-nos as pernas, e lutaremos. Tirem-nos tudo, e lutaremos. Tirem-nos a dignidade, e venceremos. Não sei à custa de quê. À custa de pernas espezinhadas, certamente. À custa de gente perdida e morta e assassinada nos confins da memória, porque é assim que se constroem as vontades: também em capelas de ossos, mas ossos duros, ossos a vermelho vivo. Porque talvez necessitemos de sangrar para que o sangue cubra a terra e a terra seja sangrenta e expurgada. Talvez aquela gente, aquela gente dos carros blindados, aquela gente que se cobre de glória nos Montes Olimpo da nossa era, aquela gente viciosa que se pavoneia em novos Espelhos Meus, agora nomeados de novo, assessores, que afiançam não haver gente mais bela que esta, sim, talvez aquela gente se compadeça e aceite parar com a sangria. E talvez seja esse o dia em que, sem pernas e sem honra, sem força e cheios de dor, nos uniremos. Não podem tirar-nos a dignidade. Não podem decretar-nos para fora da existência. Mas tentam. Tentam fazer-nos cigarras e formigas. Tentam desbastar-nos porque somos de rocha. Tentam fazer tudo e acabam a fazer um irrisório nada, (para esta gente, é sempre uma imensidão de nada) a tornar almas flamejantes, a dar ignição à utopia. E nascem-nos novas pernas, porque serei eu a levar-te, caso não consigas andar; serás tu a pegar em mim, caso eu já não possa levantar-me; seremos duas rimas de um poema, seremos mundos maiores que este mundo, e diremos não. Chega. Basta. Não. Isto não. Já basta. Quero viver. Quero que ela viva ao meu lado. Quero que ele cante ao meu lado. E vocês, gente de carros fumados e espelhos untuosos, estão à espera. Não vos bastou. Nada vos basta. Convenceram-nos de que a injustiça é justa, de que matar o pensamento é justo, de que despejarmos ácido na cara uns dos outros para ganhar mais uns cobres é justo, de que há demasiada justiça no mundo e, portanto, vai sendo tempo de nos transformarmos num mundo de facínoras e assassinos. Assassinos da vontade, da dignidade e de um caminho luminoso. Talvez precisemos de saborear o sangue da terra ensanguentada para nos arrependermos. Talvez precisemos de olhar para a Pietá milhões de vezes, talvez precisemos de ser Maria, de ter o filho, de Deus ou de um deus qualquer, perfurado e torturado para redescobrir a capacidade preciosa de gritar, dizer não, dar as mãos, roçar os ombros, vamos para cima, gritemos para lá, que não podemos viver toda a vida nisto, neste opóbrio, olho para ti e vejo uma vida que merece ser vivida sem lágrimas, vamos vivê-la, vamos lutar, porque choras?, é preciso, é preciso lutar, mesmo que agora não vejamos a luz, vê-la-emos daqui a nada, está de mãos dadas com a dignidade que não podem tirar-nos.<br />
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Não sabemos o que esperar, quando estamos lá fora. Não sei o que sentir, estando cá fora. Quero sentir o cheiro da liberdade, mas não sei se ela se disfarça, à esquina, para nos enganar. Quero saber que os nossos ombros se unem, mas também não sei se o fazem. Creio. Tenho que crer. Tiram-nos tudo, menos a dignidade. É com a dignidade, com a alma em chamas e maior que o pensamento, que faremos tudo de novo, que escreveremos outra história. Uma história que possa ser contada e cantada.<br />
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O respeitinho mata-nos. Afoga-nos. Enforca-nos. Mas só o compreenderemos quando já estivermos podres, mortos, afogados e enforcados. É este respeitinho que nos entope as veias e embarga a voz. É este respeitinho que seca mentes e verdades, que nos paraliza e torna ociosos perante o mal. É o respeitinho que nos diz, ao ouvido, sublime e sibilino, "não tomo posição porque estou acima disto"; "não digo nada porque já combati que baste"; "isto não me afecta e não vou dizer nada". É o respeitinho que torna a apatia um oceano. Foi o respeitinho, também sublime, que fez definhar a terra de Kant e nascer um Führer. E hipnotizar Heidegger ou Riefenstahl. É este respeitinho que nos submete, achincalha, algema e destrói. É esta vontade intensa de pulsões sebásticas que nos torna sôfregos por um herói, um herói que traga ordem, que salve, a salvação ali ao lado, mesmo que ela implique vergastas e dor interminável. Porque temos medo de perder o respeitinho, de perder a ideia-mãe de todas as relações que nos mantiveram vivos, de nos sentirmos nus e recém-nascidos num oceano desconhecido, com uma baleia branca à espreita, com um Leviatã ali tão perto, e tudo porque decidimos levantar a voz, deixar o respeitinho a dormir. Respeitemos o seu sono eterno. Deixemo-lo dormir. Cumpriu-se. Fez. Deixemo-lo. Foram quarenta e oito anos de noite profunda, fundados com o respeitinho pelas botas e pelos votos de pobreza. Talvez não baste deixá-lo dormir. Não. É preciso matá-lo. É preciso crivá-lo de perguntas até que exale um suspiro final. Até que entre num estertor e morra de dor. Até que não seja mais do que já provou ser: uma memória bafienta de tempos tenebrosos.<br />
<br />
Basta de respeitinho. Basta de respeitinho podre. Basta de desligarmos as mentes quando alguém fala de nariz firme e voz escorreita. Duvidemos. Duvidemos de tudo e perguntemos sobre tudo. O respeitinho assassinou-nos e precisamos de matá-lo. Precisamos de outra coisa qualquer. Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-70616928378011921952012-09-20T17:14:00.002-07:002012-09-20T17:16:06.421-07:00Começar<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://sphotos-a.xx.fbcdn.net/hphotos-ash4/c80.0.403.403/p403x403/391673_345722772188133_2044612836_n.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" src="http://sphotos-a.xx.fbcdn.net/hphotos-ash4/c80.0.403.403/p403x403/391673_345722772188133_2044612836_n.jpg" width="320" /></a></div>
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Prometo que abandono isto tudo, estou farto, é desta, já não consigo. Uma, duas, três vezes. E nunca consigo. Pergunto porquê. E não obtenho resposta. Não há resposta. Não precisa de haver, porque ficarão apenas interrogações.<br />
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Percorro uma rua escura, breu, palavras sussurradas, direcção perdida e pouca vontade de encontrar o norte. Talvez as estrelas mo apontem, mas olho-as sem alusões ou intenção.<br />
<br />
E lembro-me de quando tudo começou. Lembro-me do sabor a justiça. Lembro-me de ti. Lembro-me do teu olhar regozijado porque não me contive e também não quiseste conter-me. Lembro-me daquele termo de esparguete, depois de uma manhã de trabalho, duro e suado, olhos semicerrados sobre a dureza telúrica, a terra que te acolheu antes de serem horas - só que todas as horas são boas e nenhuma é aguardada - e o pirralho à sombra, esperando, impaciente e sonhador, que te recolhesses. Lembro-me dos músculos secos e de uma camisa aos quadrados, passada a ferro por mãos firmes, uma camisa sem pretensões mas firme como aquelas mãos, a firmeza que vos roubei, o olhar sempre distante que vos furtei e o sabor a justiça que não quero esquecer. E lembro-me. Foi ali que aprendi. Sentas-te numa rocha e observas-me. Eram pingos brilhantes, era um orvalho salgado que tremeluzia no bigode. Palavras parcas e graves, faíscas no olhar, a fúria desaparecida no horizonte, porque, na terra, nesta terra, a fúria pertence ao céu e nós sentimos as nossas raízes, levantados do chão.<br />
<br />
Foi assim que começou. Foi nesse instante de partilha que percebi a palavra sacrifício. E é nesse momento que revivo o sabor a justiça. Foi aquele termo de esparguete com frango, feito à pressa, aquele termo vermelho que herdei - e tantos anos durou -, aquela tampa fosca, que me fez revolto. Revolto e revoltado. Porque, se nos habituamos a sermos tratados como seres humanos, esse hábito torna-se sangue e esse sangue torna-se alma. E nunca mais somos iguais ao que éramos. É assim que descobrimos irmãs e irmãos por esse mundo fora. Nunca mais somos iguais ao que éramos para sermos iguais a um mar de ombros, a um oceano de vozes e canções. Porque achaste que eu merecia, apesar de nada ter feito, aquele termo de esparguete com frango, e riste-te durante anos com essa história, e rimo-nos durante toda a vida com esse momento, apesar da minha vergonha e apesar de ter compreendido tarde demais o que significou para ti e para mim. Porque trabalhaste de músculos secos e nunca te queixaste; e se as tuas queixas eram o teu riso, compreendo melhor por que razão aquela canção troou, anos a fio, naquela casa. Para não sermos famélicos, precisávamos de lutar. Para não termos amos, precisávamos de saber que alguém lutou por nós. Que alguém deu o seu quinhão aos filhos e apertou o cinto de couro desbotado para disfarçar a tristeza.<br />
<br />
Sábado. Tento conter a comoção. Carrego-te cá dentro, e contigo gerações de gente explorada por outra gente, gente que não sabe de termos com esparguete e frango, gente a quem poderia tentar explicar isto e que se riria de mim. Cá dentro, só cabe gente pobre e sem faladuras caras. Gente doce e amarga, esculpida no vento e macerada pelo ar fétido da fábrica. E canto, apesar de não saber cantar. E a minha voz eleva-se para elevar outras. Tonitruante como a tua. Cantamos os dois. Gritamos os dois. O sabor a justiça ficou-me daquele dia. Daquele dia do termo vermelho em que tudo começou.Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-38197087473161169422012-07-16T17:38:00.000-07:002012-07-16T17:38:25.827-07:00I ain't got war in me no more<div style="text-align: center;">
<iframe allowfullscreen="" frameborder="0" height="360" src="http://www.youtube.com/embed/k1UwnMJ-5KE" width="480"></iframe></div>
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Também sou dono de virtudes cristãs. São músculos destreinados, estes. Perdão, compaixão, tristeza, redenção. Releio textos antigos (não tão antigos) e encolho-me, primeiro de desilusão e depois de reconhecimento: o ácido, a aspereza, a crueldade já não moram aqui. De alguma forma, terão sido estes anos, estas odisseias encrespadas, a ensinar-me que só se navegam águas furiosas escusando-lhes a fúria e lendo-lhes a alma. Porque é que ninguém ouve as tempestades e percebe que as nuvens rugem de tristeza? Bem-entendido, as nuvens também não se esforçam para se fazerem entender. Talvez tenham tentado uma, duas, três vezes, desesperando com o silêncio. Rugir nunca implica uma resposta. É mais simples, dói menos. E podemos rugir de muitas formas. Mas não precisamos de responder aos rugidos de quem já nos feriu.<br />
<br />
Talvez seja essa a minha lição, a lição que voltei a aprender hoje. Já não me estatelo com o desmando de outrora; o espalhafato e as lágrimas ficaram guardados na Serra, longínqua e elevada, à espera de que volte para buscar-lhes a sombra. Provavelmente, perderam-se nos trilhos e nos cântaros, vadios e livres, o cheiro a altitude perdeu-mos e também não quero ir buscá-los. Talvez agora, mais leve, lágrimas choradas e incompreensões lançadas de um penhasco, possa regressar e ponderar. Não temos de passar a vida em gargalhadas melífluas. Não temos de viver com o horizonte toldado pelo medo da solidão. <br />
<br />
E eis porque os meus esparsos cabelos brancos parecem hoje reluzir: o jardim dos caminhos que se bifurcam deu-me a escolher e preferi arrefecer as brasas que outrora teria pisado. As minhas fúrias estão noutras paragens. E posso olhar as estrelas, pensar nos sonhos que se transformaram em memórias sem ter vontade de queimá-las com ácido, e recolocar a Utopia no meu mapa. Aqui dentro, chega de guerras.<br />
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<blockquote class="tr_bq">
<b>In Spanish there is a word for which I can’t find a counterword in English. It is the verb vacilar, present participle vacilando. It does not mean vacillating at all. If one is vacilando, he is going somewhere, but does not greatly care whether or not he gets there, although he has direction. Everything in the world must have a design or the human mind rejects it. But in addition, it must have purpose or the human conscience shies away from it.</b><span style="background-color: white;"> </span></blockquote>
<blockquote class="tr_bq">
<b>John Steinbeck, </b><b><i>Travels with Charley </i></b></blockquote>
<blockquote class="tr_bq">
</blockquote>
<blockquote class="tr_bq">
</blockquote>
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<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-76367573516045631042012-06-09T09:28:00.000-07:002012-06-09T11:04:43.722-07:00Um ano.About today (a year ago... ish)<br />
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Fomos à luta. Perdemos. Perdeste. Fomos lutadores. Primeiro <i>round</i>. Foste ao tapete, mas eu estava lá. E levantaste-te, esmurrando-me, batendo no que nos unia, mas levantaste-te; sou forte, não ligo, as dores também nos fazem carregar mais areia, ficamos mais gente, ganhamos espaço cá dentro para suportar o mundo nos ombros.<br />
<br />
Segundo <i>round</i>. Levantas-te e já não esmurras ninguém. Dependuras-te em mim e eu tenho força. Pões o braço direito à volta do meu ombro e sinto que somos outra vez dois companheiros da mesma viagem, embora eu tenha chegado vinte e tal anos depois. Nunca mo perdoaste. Cheguei tarde para te limpar as feridas, demasiado fundas e envenenadas para me deixares curar-tas. Tinhas medo que as visse, tinhas medo que as visse e me deixasse envenenar.<br />
<br />
Terceiro <i>round</i>, já não consegues; tentas e desesperas, faúlhas desfazem-te o ânimo e os músculos, a alma também é musculatura, o amor é como lhe damos treino, quem ama muito tem a alma grande, e é assim que sabemos que vais partir. Mas eu estou lá e limpo-te as lágrimas. Pergunto-te se ainda estás acordado, tu dizes que sim, meneias a alma, a força toda num gesto e tentas dizer que sim, sim, ainda estou aqui, não me deixes fugir. Tocam as placas de madeira, dez segundos para o fim. O teu braço já não me rodeia o ombro, mas eu finjo que sim, e, em todo o caso, estou aqui.<br />
<br />
Quarto <i>round</i>, a campainha toca antes de serem horas. Estou ali contigo e sabemos que saímos derrotados. Perdemos todos os <i>rounds</i> e preciso de seguir a viagem só. Olho para as cadeiras onde te sentavas e todo o mal que me fizeste continua lá, mas não é uma memória, é a realidade que debrua a nossa viagem. Não vejo o bem que me fizeste porque o deponho todo no mundo e deixo que os sorrisos me bastem. Porque, nisto das viagens, nisto de quem nos acompanha, os espinhos e as perguntas também pertencem à terra.<br />
<br />
Não estive perto, no fim. Não estive perto. O que é que podia dizer? Estava longe.<br />
<br />
Um ano.<br />
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<iframe allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="http://www.youtube.com/embed/r26VsCGCgb0" width="420"></iframe>
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Today you were far away</div>
<div style="text-align: center;">
and I didn't ask you why.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: center;">
What could I say?</div>
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I was far away.</div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
You just walked away</div>
<div style="text-align: center;">
and I just watched you.</div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
What could I say? </div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
How close am I to losing you?</div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
Tonight,</div>
<div style="text-align: center;">
you just close your eyes.</div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
And I just watch you</div>
<div style="text-align: center;">
slip away.</div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
How close am I</div>
<div style="text-align: center;">
to losing you?</div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
Hey,</div>
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are you awake?</div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
Yeah,</div>
<div style="text-align: center;">
I'm right here.</div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
Well,</div>
<div style="text-align: center;">
can I ask you about today?</div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
How close am I to losing you?</div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
How close am I to losing?</div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-7023007034192388512012-04-03T16:50:00.000-07:002012-04-03T16:50:57.626-07:00Servidão<a href="http://sol.sapo.pt/inicio/Sociedade/Interior.aspx?content_id=45860#.T3tVRveLues.facebook">«Há milhares de jovens licenciados desempregados mas não há valor económico na sua licenciatura. O sistema produz jovens [licenciados] que não servem para nada», frisou.</a><br />
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Releio esta afirmação. Não quero tresler ou ser injusto. Torno a ler. O meu cérebro processa-a assim: "O sistema produz jovens que não servem para nada".<br />
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Hoje, há alguém que considera ser apropriado dizer que uma quantidade indeterminada de seres humanos não serve propósito algum. Somos não-pessoas. Somos inúteis. Detemo-nos às portas da civilização e pontapeiam-nos na cara, zurzem-nos o ego e sibilam "vai-te embora, escroque preguiçoso, vadia, inútil". Cabisbaixos, muitos de nós incorporam a lógica totalitária que subjaz a esta sentença. Muitos de nós choram e deixam o olhar pousar-se nas pedras, talvez supondo que são dignas comparsas das gentes inúteis. É esta a vitória que desejam: partir-nos a espinha, tornar-nos submissas, deixar-nos combalidos e de ânimo destroçado. Blitzkrieg. Guerra-relâmpago. E a tempestade dura há muito tempo. São estes os novos capitães, os capitães da indústria, aqueles que os de Abril tiveram a ilusão de desalojar.<br />
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Portanto, eu não sirvo para nada. Os meus colegas de faculdade não servem para nada. Somos todos "funcionários", diz este empreendedor emérito. Não somos autónomos. Não conseguimos pensar fora da caixa, não somos criativos, não sabemos empreender.<br />
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Gostaria de enfurecer-me. Gostaria de sentir asco. Gostaria de revoltar-me e dizer que a retribuição está a chegar.<br />
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Pois bem, vou enfurecer-me. Sinto asco. Destas palavras e daquilo que as originou. E acho que a retribuição está a chegar. Precisamos de uma revolução. Uma revolução de empatia. Uma revolução de humanidade e humanismo. Porque nós, esses jovens serviçais sem serviço, essa multitude formada para coisa alguma, precisamos de ouvir estas pessoas e não assentir. Precisamos de sentir que o mundo é mais comprido e longínquo que os semicondutores ou as fotónicas. O mundo é grande e belo e enigmático; viu nascer Shakespeare e Rosa Luxemburgo; Petrarca, Dante e Emily Dickinson. Dou por mim a imaginar que lugar teria o bardo no mundo destes robôs. Seria, provavelmente, um publicitário; talvez trabalhasse num call-center e tecesse sonhos de uma noite de verão enquanto arrancava cabelos ao ouvir, pela enésima vez, a palavra "colaborador". Talvez Dante não precisasse de descer aos infernos para resgatar Beatriz; talvez lhe bastasse ponderar o inferno de viver à beira do desemprego. Bebi-lhes as palavras enquanto me tornei proto-funcionário, enquanto me tornei um alienado, um descolaborador - porque querer desenhar a condição humana sem recorrer a tostões e centavos é não servir para nada, é ter a ilusão de que podemos ser algo que nunca seremos. Uma classe de pobres, carteira vazia e espírito cheio, história curta e imaginação comprida, que tolhe estes animais, estes porcos imundos, anafados do sucesso, sentados na cátedra, proferindo julgamentos beneméritos e deixando subentendido um medo mortal, o medo de que a sua farsa se desmorone a todo o momento. E não haverá alguém que os informe da sua nudez; não ouviriam, de qualquer forma. A patologia de que sofrem é demasiado virulenta. Nós, os inúteis, os novos condenados da terra - poucos seremos (hoje mas não sempre, é essa a promessa), as migalhas da ilusão de uma igualdade que não podemos almejar, porque não servimos para nada, deixámos de existir como gente. Somos uma alcateia de lobos domesticados. E podemos uivar, porque ninguém nos ouvirá.<br />
<br />
De facto, não lhes servimos para nada. Eu não lhes sirvo para nada. Cuspo-lhes na cara quando me querem conceder a liberdade de ser escravizado. Não conseguirão, prometo-vos, quebrar-nos. Durante muito tempo, não quis acreditar. Ainda tenho dificuldade em articulá-lo. Mas cada vez me parece menos implausível considerar que o mundo está a retroceder e a recuperar suseranias, vassalidades e corveias várias. Pois bem: puta que vos pariu, senhores. Puta que vos pariu a todos, mais o vosso discurso imundo e os vossos olhos torcidos. Chegará a hora em que nenhuma das vossas palavras ficará ao abrigo da história. Nem dos historiadores, que vos escrutinarão e demolirão como porcos facínoras que são. Não vos servimos para nada, e cada vez serviremos menos. E será essa uma das nossas bandeiras. Não vos serviremos para nada. Mas lembrem-se: a consequência de não vos servirmos para nada é que vocês também nos servem de pouco. E isso deveria fazer-vos tremer, à noite, na escuridão das vossas certezas opulentas.<br />
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Uma pergunta que me enegrece as horas: até quando suportaremos desaforos deste calibre?Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-30660929231275784502012-02-19T07:44:00.001-08:002012-02-19T07:47:38.920-08:00Eu não estou aqui<div><p>Eu não estou aqui. Eu não estou em lado algum. Eu sou um esqueleto de etiquetas. Eu sou um monte de esperanças chocadas no vazio. Sou a minha família que desconfia de saber pensar e reflectir e considerar e meditassentir. Sou as minhas amigas que se apanham em corridas montanha acima, sou os meus amigos que se apanham a rebolar montanha abaixo. Estou no meio desta gente toda e sou um nevão que ensimesma por só saber nevar. Eu só sei nevar. Não nasci para estar aqui. Nasci para estar em lado nenhum, hibernavegante num mundo de fatiotas e sotaques imperiais, porque não falo estes idiomas, porque ser bom só, só não chega, e eis que aparecem os apocalipses, estou tão preocupado, estou tão preocupada, estamos tão preocupados contigo, tens tanta coisa aí dentro e em cima dos ombros, sabes tanto, leste tanto, conheces tanto, mas o teu rumorejar não nos convém, porque a era da técnica é implacável. Ou sabes fazer ou extingues-te. Ou sabes realizar ou apagas-te.</p>
<p>Eu extingo-me e ainda sou um empecilho.</p>
<p>Eu apago-me e ainda nada fiz.</p>
<p>Sou um conglomerado de aspirações e incertezas, porque tomo decisões erróneas mas sou brilhante, porque faço coisas estúpidas mas sou excepcional, porque me convidam para escrever sobre coisa nenhuma e sou muito importante num microcosmos que nem o mais imponente dos microscópios de Jansen ou Anton van Leewenhooken (ou lá como se escreve isto, eu sei lá, gosto de nomes estranhos, gosto de coisas esquisitas, nomes evocativos, finjo coleccioná-los para não me sentir só, para sentir que este mundo ainda encerra mistérios e nem está potencialmente do nosso lado da cortina).</p>
<p>Sou um número indeterminado de pontos de interrogação (até me fazem as hastes dos óculos, até me constroem a forma de perceber o choro de um menino birrento, sou todo pontos de interrogação, acho que os meus cabelos não são verdadeiramente encaracolados; estão apenas debruçados sobre o problema da sua própria caducidade, e tão preocupados com insondáveis trivialidades que se encaracolam de forma vil), tem calma, sê sereno, sê tudo o que puderes, estou aqui para ti, estarei ali para ti, sim estás sempre lá para mim, mas nas horas difíceis estive sempre só e tive que ser eu mesmo a limpar as minhas próprias lágrimas. E não há ser tão só como aquele que chora a perda e ainda precisa de ser ele próprio a consolar-se, porque, para lá da porta do quarto andrajoso, o mundo é feio e imundo (mais imundo) e hostil e todas essas coisas com que nos debatemos, porque queremos um mundo belo e versátil e resistente, apesar da evidência óbvia, obviedade evidente, de que o mundo estaria bastante melhor sem seres humanóides.</p>
<p>Não, eu não estou aqui, ali, aí, em lado algum. Eu não estou do lado da técnica e quero rezar, mas não sei a quem ou a quê. Olho para o lado e vejo milhares de crentes no culto da maçã, rezas intermináveis a um deus deuzinho, escondido no bolso, aplicações para saber se deus existe é que nenhuma, embora desse jeito, e dar jeito é coisa fundamental, é o nec plus ultra de tudo, só existimos se dermos jeito e soubermos vender a alma. Eu estou do lado da alma precária e preciso de chorar. E preciso de saber se este mundo é encantado e medir-lhe o encantamento e injectar-lhe encantamento, a ver se descubro o coração das trevas e o transformo em coração de outra coisa qualquer. Tem calma, sê sereno, o povo é sereno, o povo é isto e aquilo e tudo o que nós quisermos, mas precisamos de ter uma função, precisamos de competir e ter coeficientes, se me meter dentro de um computador será que ele me decifra?, é o que lhes pergunto, aos alquimistas da razão, aos religiosos dos coeficientes.</p>
<p>Eu não estou aqui. Eu não estou em lado algum. Eu não sei fazer nada e vim para terras inóspitas saber se não fazer nada me podia satisfazer. E não tenho atalhos.</p>
</div>Unknownnoreply@blogger.com0Vienna International Airport, Vienna48.11996 16.560734tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-13658156010853221302012-02-14T08:04:00.001-08:002012-02-14T08:04:12.931-08:00tentativatu queres histórias<br />
e queres mitos<br />
e desejas mundos e fundos e ladeiras por onde descer<br />
que fundos e ladeiras e mitos e histórias são<br />
Invernos, porque somos portuguesas e eses e esas,<br />
e pretos,<br />
e brancos,<br />
quero salvar-te mas não sei de quê;<br />
quero descobrir-te mas não sei porquê;<br />
são mundos e margens de rios.<br />
<br />
tu queres mitos e queres histórias e queres os mundos e fundos das lágrimas<br />
que te choram sem apego. queres as coisas, queres ser coisista, queres que as coisas se tornem<br />
no Ti, no Teu, no teu Deus, compras em lojas de luz, compras doces e amargas,<br />
somos todos Portugueses, portugueseS, somos o pregão da lua apagada,<br />
andamos às escuras, andas às escuras em busca de histórias e eu não tas posso contar,<br />
já as esqueci,<br />
deixa-me chorar agora,<br />
esqueci-me das histórias, esqueci-me de que os homens são mitos primeiros e segundos,<br />
e terceiros-quartos-milionésimos,<br />
porquê?, tu desejas mundos e fundos e ladeiras por onde descer,<br />
e eu choro-te esses mundos e fundos e ladeiras por onde navegar,<br />
é o mar que nos navega, é esse bandido que nos prende.<br />
<br />
tu queres histórias e mitos e pregões de luas apagadas-acesas-meia(luz).Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-45303955415321113202012-01-14T14:56:00.000-08:002012-01-14T14:56:09.950-08:00Dois mil e doze<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://www.mcu.es/principal/img/novedades/2009/Signoguias_Museo_Altamira01.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="349" src="http://www.mcu.es/principal/img/novedades/2009/Signoguias_Museo_Altamira01.jpg" width="350" /></a></div>
<br />
Dois mil e doze. Ano de luta e frases longas. Deixo as frases curtas para uma releitura de Molero e de Márquez, do Outono do Patriarca e Dinis Machado. Deixei as resoluções no mundo em que não tinha cabelos brancos e ainda tinha o meu pai por perto, a embirrar com as estrelas porque os desenhos as dizem de cinco pontas e não, elas têm mil milhões de pontas e outros mil milhões de brilhos curtos e longos. Era uma revolta que sentia com as representações do mundo, os seres humanos não têm ambição, esqueceram-nas grutas de Altamira, era nessas épocas escavadas que os artistas queriam pintar uma realidade nova nas grutas para esquecer um friasco danado, a carne de boi a crepitar e aqueles olhos crespos (talvez fossem as sobrancelhas a fazer reflexo na parede e terá nascido Deus e o Buda e Alá e todas as coisas que deram novos homens ao mundo) a pintar mais pontas nas estrelas do que elas têm na realidade. Os seres humanos já não sonham as utopias nem se deixam sonhar por elas; vejo-as anafadas, rutilantes, dormem num livro de histórias e nós todos não passamos de folhas de erva, planetas e planetas como gotículas nos sonhos das utopias anafadas. E o pior é que nunca mais acordam, dizia ele, o meu pai, nunca mais acordam e nunca mais fazemos a revolução, para estes cabrões serem todos passados a fio de espada, primeiro os pretos e depois os brancos - mas pai, não podes fazer a revolução socialista se acreditas nessas coisas - rapaz, deixa-me ser o que sou, porque, no fim, somos todos irmãos e não deixo o meu irmão preso na estrada, tronco no alcatrão fundido, só porque é preto ou chinoca; nisto estamos todos juntos e eu até gosto mais da pretalhada que desses ordinários, essas coisas nefastas que adoram o dinheiro e vão à missa comungar, mas não tocam no pão ázimo, tomaram o gosto das notas e preferem comê-las. Rapaz, só não me faças a desfeita: renega a religião, mas não te renegues nunca, que o teu maior tesouro é não sonhares com a servidão. Se deixas a coluna quebrar, até podes voltar a andar, mas nunca deixarás de rastejar, como estes penteados, esta classe de bandidos que corta árvores de madeira rara, esses colossos com que sonhei e não vou ver, para palitar os dentes, um de cada vez, afiado com moedas ensanguentadas, fincam a dentuça na carne e tu não deixes, rapaz, tu não deixes, que eles fazem-te doente, aquela fúria de nunca verem quem amam, onde é que isso já se viu?, quem é capaz de viver nessa fúria lamacenta?, vê só onde deixaram o mundo. Tens que fazer qualquer coisa, filho. Não te deixes levar por estes filhos da puta.
Foi isto que ele me disse, no último olhar. E eu gostaria que isto fosse ficção, mas não é. Respirei o ar da morte e afundei-me naquele sofá, à espera que um vórtice se abrisse e o tempo andasse para trás. Mas não anda, para trás ou para diante, a não ser que Prometeu seja um labrego de tractor e se recuse a mexer o rabo. E é este o nosso desafio: ler nos olhos de quem nos deixa e tentar ver as grutas de Altamira, sonhos de um mundo justo e relações entre pessoas que não sejam mediadas pelo afã de saber exactamente quanto devemos uns aos outros.
Se, um dia, puder dever tudo a todos sem preocupar-me com quanto devo, este universo será menos perverso. E talvez possamos olhar as estrelas, fazer amor com o tecto celeste, achar-lhes a lógica e sentir a história de mil mulheres entrar-nos no corpo, ali rodeados de ulmeiros milenares, ou salgueiros, quem sabe que árvores?, para voltarmos a saber o que é maravilharmo-nos com silêncios e sussurros.
Se dois mil e doze for isto, se puder ver grutas de Altamira nos olhos de quem vir partir e o fim da Terra nos olhos de quem chegar, pode ser que ainda cá esteja no dobrar da alvorada.Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-33667275255567653522011-10-24T15:05:00.000-07:002011-10-24T15:05:38.777-07:00Perder a memória<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://bharatlines.com/wp-content/uploads/2011/09/memory-loss.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://bharatlines.com/wp-content/uploads/2011/09/memory-loss.jpg" /></a></div>
<br />
<br />
Acordei com medo de perder a memória. Lembrava-me, repentinamente, de tudo, Funes renascido, esquecia-me vertido um segundo. Era um turbilhão. Acordei e pensei que um dia esqueceria este medo. Fiapos de gente que também seria esquecida.<br />
<br />
"Onde estás?". "Nos confins". "Onde, mesmo?". "Nos confins, essa terra de todos e gente nula, onde a memória se debruça num lago e acabar por sonhafogar-se em recordações". "Estás, portanto, à espera". "Sim, à espera, mas não de algo ou alguém". "Porque esperas, nesse caso?". "Espero até esquecer as mágoas. Espero até não achar mais os confins, até que eles me pareçam o centro de tudo e não lhes perceba a fronteira". "Aguardas a tua morte, é isso?". "Não, aguardo o tempo em que acordarei com medo de perder a ideia de morrer. É que perder a ideia de morrer significa perder a ideia de suspirar, o jeito de viver, a candura de amar um amor surripiado". "E a morte de outrém? A minha?". "A tua não a posso esperar. É um segredo teu e das tuas pegadas. Olha bem para elas. Se tiverem uma sombra penumbrenta, ela está à espreita".Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-20263616587448429922011-10-23T08:10:00.000-07:002011-10-23T08:10:38.070-07:00when I was older<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjN2cvL6xgifHBJOGBJLUQ8lgvo4YI0B-2kgonV1hWxwo_mdItmJXMNjdxGxsR2Sk4F0qNRVpiV0mlt6QldK8ocE9o8yWe7TjtcZ6wYDaS-cW0cDYFGMRAMaGPc3S0ixYMhgqZPwZMyhQmi/s1600/nice-willow-tree.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjN2cvL6xgifHBJOGBJLUQ8lgvo4YI0B-2kgonV1hWxwo_mdItmJXMNjdxGxsR2Sk4F0qNRVpiV0mlt6QldK8ocE9o8yWe7TjtcZ6wYDaS-cW0cDYFGMRAMaGPc3S0ixYMhgqZPwZMyhQmi/s400/nice-willow-tree.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<div style="text-align: center;">
when I was older,</div>
<div style="text-align: center;">
I wanted to be a flight to heaven,</div>
<div style="text-align: center;">
a thing of stars,</div>
<div style="text-align: center;">
a show of tunes and blessed grass.</div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
I when older wanted to know no bounds.</div>
<div style="text-align: center;">
I was all figures,</div>
<div style="text-align: center;">
I created myself</div>
<div style="text-align: center;">
A thing of leaves,</div>
<div style="text-align: center;">
A tree of scents.</div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
when older I wished no anguish, no serenity,</div>
<div style="text-align: center;">
only a calm of forests</div>
<div style="text-align: center;">
nether hallows of no people and no storms.</div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
when I was older I had orange hearts,</div>
<div style="text-align: center;">
and purple hair, and cosmic minds.</div>
<div style="text-align: center;">
and I worried none. because universes were mine to fly.</div>
<br />
<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-45213816968827119152011-10-20T06:50:00.000-07:002011-10-20T06:50:05.508-07:00quatro meses mais um<span class="Apple-style-span" style="background-color: white; font-family: verdana, arial, 'lucida sans', helvetica, geneva, sans-serif; font-size: xx-small;"></span><br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://autoandrive.files.wordpress.com/2010/05/116.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="300" src="http://autoandrive.files.wordpress.com/2010/05/116.jpg" width="400" /></a></div>
<pre>
</pre>
<pre><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">
</span></pre>
<pre><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">e.e. cummings</span></pre>
<pre><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">
</span></pre>
<pre><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">my father moved through dooms of love
through sames of am through haves of give,
singing each morning out of each night
my father moved through depths of height
this motionless forgetful where
turned at his glance to shining here;
that if(so timid air is firm)
under his eyes would stir and squirm
newly as from unburied which
floats the first who,his april touch
drove sleeping selves to swarm their fates
woke dreamers to their ghostly roots
and should some why completely weep
my father's fingers brought her sleep:
vainly no smallest voice might cry
for he could feel the mountains grow.
Lifting the valleys of the sea
my father moved through griefs of joy;
praising a forehead called the moon
singing desire into begin
joy was his song and joy so pure
a heart of star by him could steer
and pure so now and now so yes
the wrists of twilight would rejoice
keen as midsummer's keen beyond
conceiving mind of sun will stand,
so strictly(over utmost him
so hugely) stood my father's dream
his flesh was flesh his blood was blood:
no hungry man but wished him food;
no cripple wouldn't creep one mile
uphill to only see him smile.
Scorning the Pomp of must and shall
my father moved through dooms of feel;
his anger was as right as rain
his pity was as green as grain
septembering arms of year extend
yes humbly wealth to foe and friend
than he to foolish and to wise
offered immeasurable is
proudly and(by octobering flame
beckoned)as earth will downward climb,
so naked for immortal work
his shoulders marched against the dark
his sorrow was as true as bread:
no liar looked him in the head;
if every friend became his foe
he'd laugh and build a world with snow.
My father moved through theys of we,
singing each new leaf out of each tree
(and every child was sure that spring
danced when she heard my father sing)
then let men kill which cannot share,
let blood and flesh be mud and mire,
scheming imagine,passion willed,
freedom a drug that's bought and sold
giving to steal and cruel kind,
a heart to fear,to doubt a mind,
to differ a disease of same,
conform the pinnacle of am
though dull were all we taste as bright,
bitter all utterly things sweet,
maggoty minus and dumb death
all we inherit,all bequeath
and nothing quite so least as truth
--i say though hate were why men breathe--
because my Father lived his soul
love is the whole and more than all</span></pre>Unknownnoreply@blogger.com0N338, 6260 Manteigas, Portugal40.326131481937779 -7.577133178710937540.277705981937778 -7.6560971787109375 40.374556981937779 -7.4981691787109375tag:blogger.com,1999:blog-3927526722424651873.post-10151743176754438602011-09-05T08:31:00.000-07:002011-09-05T08:31:10.721-07:00Descobrir a pólvoraDaniel Oliveira diz que<a href="http://arrastao.org/2340959.html"> "temos, em Portugal, como no resto do mundo ocidental, uma nova corrente ideológica. Uma espécie de neoliberalismo de Estado."</a><br />
<br />
A noção de que o neoliberalismo é uma ideologia anti-Estado e anti-redistribuição continua a colonizar discursos mais ou menos progressistas, mais ou menos populistas e mais ou menos demagógicos. De um lado e de outro. Aquilo que me incomoda, quando esta noção é repetida <i>ad nauseam</i>, é relativamente simples. Primeiro, é falsa. Segundo, é perniciosa.<br />
<br />
É falsa porque o tal "neoliberalismo de Estado" não é novo. O prefixo "neo-" é enganador, porque o neoliberalismo não recupera qualquer tradição liberal ou anti-estatista; é, como toda a gente percebeu em 1973, um conjunto de práticas que visa a reconfiguração do Estado para a providência corporativa e a transferência contínua do risco para a(s) sociedade(s). Não há aqui qualquer novidade. É dito, no mesmo texto, que "em vez do velho debate entre Estado Providência e Estado mínimo, aquilo a que assistimos é a uma síntese: o Estado cobrador." O "velho debate" morreu à nascença. <a href="http://www.nd.edu/~pmirowsk/">Philip Mirowski</a> já escreveu extensivamente sobre a genealogia e desenvolvimento intelectual daquilo a que se chama economia neoclássica e o seu braço armado, o tal "neoliberalismo". Os seus ideólogos nunca foram anti-estatistas; foram e são, isso sim, hipócritas com uma capacidade admirável, admita-se, para mistificar a realidade (equiparando democracia a capitalismo), usar preconceitos historicamente adquiridos para promover interesses ocultos e manipular o debate público, através de <i>think-tanks </i>e da monopolização sistemática dos meios de produção e difusão da informação. Foi assim que nos convenceram de que o seu espírito revolucionário e puritano servia os interesses da maioria.<br />
<br />
É por isso que se acredita que o neoliberalismo é originalmente anti-Estado. Embora encerre uma contradição evidente com a prática neoliberal, trata-se de um artifício discursivo que legitima a sua ascensão - porque, assim, a cruzada neoliberal transforma-se em cruzada pela liberdade, contra a servidão e contra os interesses instalados. Apesar de ser uma cruzada reaccionária e conservadora que recupera as satrapias como imperativo político e dependeu sempre do patrocínio público para se impor enquanto senso comum.<br />
Ainda que tenhamos provas históricas suficientes para contestar e enterrar esta ideia, ela continua a surgir. A palavra "fanatismo" parece exagerada, mas, olhando para Reagan, Thatcher, Roger Scott, Pinochet ou Carlos Menem, não podemos evitá-la. O neoliberalismo é estatista e os seus ideólogos não pretendem desarmar a sua arma preferida. São darwinistas sociais que acreditam na punição da diferença e não hesitarão em aumentar as despesas com a vigilância e a violência legitimada pelo Estado.<br />
<br />
A ideia é perniciosa porque impede a esquerda de formular uma alternativa real ao pensamento único. Continuando a promover esta versão da história, comentadores como Daniel Oliveira legitimam a revisão da história do neoliberalismo. Legitimam a ideia de que o Estado continua a ser "destroçado" ou "minado" pela quinta coluna neoliberal. É necessário combater esta ideia. Aqui há uns tempos, já falei da obra de <a href="http://sociology.berkeley.edu/faculty/wacquant/">Loïc Wacquant</a>. Em poucas palavras: se o neoliberalismo, após 2001, se transformou, foi ao deitar as garras de fora e acelerar a transformação do Estado num leviatã penal. Onde as regiões sombrias do mundo social são transformadas num pesadelo orwelliano e as regiões olímpicas parecem utopias saídas de Huxley. O Estado não está a ser minado pelo neoliberalismo. O Estado é, hoje por hoje, um instrumento de recomposição radical da realidade à medida de plutocratas. Não é o último reduto da justiça e democracia. Deixemo-nos de efabulações e chamemos as coisas pelos nomes. A esquerda anda em modo defensivo há décadas por várias razões. Esta é uma delas: fala-se muito do Estado, mas não se discute ou teoriza o mesmo. É um dado adquirido ou uma divindade incognoscível. Tiradas bafientas como "neoliberalismo de Estado" apenas contribuem para dar mais gás às mistificações de gente como o Álvaro, <a href="http://www.youtube.com/watch?v=owTiaqD1CvM">que diz não saber o que é um neoliberal</a>.Unknownnoreply@blogger.com0