«Há milhares de jovens licenciados desempregados mas não há valor económico na sua licenciatura. O sistema produz jovens [licenciados] que não servem para nada», frisou.
Releio esta afirmação. Não quero tresler ou ser injusto. Torno a ler. O meu cérebro processa-a assim: "O sistema produz jovens que não servem para nada".
Hoje, há alguém que considera ser apropriado dizer que uma quantidade indeterminada de seres humanos não serve propósito algum. Somos não-pessoas. Somos inúteis. Detemo-nos às portas da civilização e pontapeiam-nos na cara, zurzem-nos o ego e sibilam "vai-te embora, escroque preguiçoso, vadia, inútil". Cabisbaixos, muitos de nós incorporam a lógica totalitária que subjaz a esta sentença. Muitos de nós choram e deixam o olhar pousar-se nas pedras, talvez supondo que são dignas comparsas das gentes inúteis. É esta a vitória que desejam: partir-nos a espinha, tornar-nos submissas, deixar-nos combalidos e de ânimo destroçado. Blitzkrieg. Guerra-relâmpago. E a tempestade dura há muito tempo. São estes os novos capitães, os capitães da indústria, aqueles que os de Abril tiveram a ilusão de desalojar.
Portanto, eu não sirvo para nada. Os meus colegas de faculdade não servem para nada. Somos todos "funcionários", diz este empreendedor emérito. Não somos autónomos. Não conseguimos pensar fora da caixa, não somos criativos, não sabemos empreender.
Gostaria de enfurecer-me. Gostaria de sentir asco. Gostaria de revoltar-me e dizer que a retribuição está a chegar.
Pois bem, vou enfurecer-me. Sinto asco. Destas palavras e daquilo que as originou. E acho que a retribuição está a chegar. Precisamos de uma revolução. Uma revolução de empatia. Uma revolução de humanidade e humanismo. Porque nós, esses jovens serviçais sem serviço, essa multitude formada para coisa alguma, precisamos de ouvir estas pessoas e não assentir. Precisamos de sentir que o mundo é mais comprido e longínquo que os semicondutores ou as fotónicas. O mundo é grande e belo e enigmático; viu nascer Shakespeare e Rosa Luxemburgo; Petrarca, Dante e Emily Dickinson. Dou por mim a imaginar que lugar teria o bardo no mundo destes robôs. Seria, provavelmente, um publicitário; talvez trabalhasse num call-center e tecesse sonhos de uma noite de verão enquanto arrancava cabelos ao ouvir, pela enésima vez, a palavra "colaborador". Talvez Dante não precisasse de descer aos infernos para resgatar Beatriz; talvez lhe bastasse ponderar o inferno de viver à beira do desemprego. Bebi-lhes as palavras enquanto me tornei proto-funcionário, enquanto me tornei um alienado, um descolaborador - porque querer desenhar a condição humana sem recorrer a tostões e centavos é não servir para nada, é ter a ilusão de que podemos ser algo que nunca seremos. Uma classe de pobres, carteira vazia e espírito cheio, história curta e imaginação comprida, que tolhe estes animais, estes porcos imundos, anafados do sucesso, sentados na cátedra, proferindo julgamentos beneméritos e deixando subentendido um medo mortal, o medo de que a sua farsa se desmorone a todo o momento. E não haverá alguém que os informe da sua nudez; não ouviriam, de qualquer forma. A patologia de que sofrem é demasiado virulenta. Nós, os inúteis, os novos condenados da terra - poucos seremos (hoje mas não sempre, é essa a promessa), as migalhas da ilusão de uma igualdade que não podemos almejar, porque não servimos para nada, deixámos de existir como gente. Somos uma alcateia de lobos domesticados. E podemos uivar, porque ninguém nos ouvirá.
De facto, não lhes servimos para nada. Eu não lhes sirvo para nada. Cuspo-lhes na cara quando me querem conceder a liberdade de ser escravizado. Não conseguirão, prometo-vos, quebrar-nos. Durante muito tempo, não quis acreditar. Ainda tenho dificuldade em articulá-lo. Mas cada vez me parece menos implausível considerar que o mundo está a retroceder e a recuperar suseranias, vassalidades e corveias várias. Pois bem: puta que vos pariu, senhores. Puta que vos pariu a todos, mais o vosso discurso imundo e os vossos olhos torcidos. Chegará a hora em que nenhuma das vossas palavras ficará ao abrigo da história. Nem dos historiadores, que vos escrutinarão e demolirão como porcos facínoras que são. Não vos servimos para nada, e cada vez serviremos menos. E será essa uma das nossas bandeiras. Não vos serviremos para nada. Mas lembrem-se: a consequência de não vos servirmos para nada é que vocês também nos servem de pouco. E isso deveria fazer-vos tremer, à noite, na escuridão das vossas certezas opulentas.
Uma pergunta que me enegrece as horas: até quando suportaremos desaforos deste calibre?