04/06/2013

"Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar."

Como é que se Esquece Alguém que se Ama?
Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'

"Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?
As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar.
É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si , isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução.
Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha.
Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado.
O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar."

03/06/2013

02/06/2013

Discos IV

I

Sempre fui desajeitado com os meus discos. De uma maneira ou de outra, consigo deixá-los cair, riscá-los ou rasgar-lhes as capas - às vezes, um rasgo pequeno, imperceptível; outras, um rasgo que destroça o valor estético da capa. Isto sucede, especialmente, com os discos de que gosto mais; são os discos que me levam a ter cuidados particulares com a colocação da agulha e, invariavelmente, a falhar. Não sei por que razão isto acontece. Procuro usar de cuidados especiais e raramente resulta; o braço do gira-discos resvala, grãos de pó invisíveis perturbam a agulha ou um movimento incauto faz trepidar o móvel onde o gira-discos repousa.

Talvez seja por isto que esses discos são sempre os primeiros a desaparecer, subtis, porque as pilhas de tralha escondem o seu brilho e não consigo dar conta da sua desaparição. Só muito mais tarde, só tarde demais, quando não posso preparar-me para delinear o espaço vazio, é que me apercebo de uma falha, três milímetros a menos por ali, e tenho mais uma colina íngreme a percorrer.

Não há discos substituíveis. Cada um tem a sua história; cada um tem as suas mágoas. Desajeito-me com os meus discos favoritos e, às vezes, esqueço-os; e, às vezes, isso tem consequências. Às vezes, retenho apenas as memórias dos riscos e dos rasgos, esquecendo a música, o segredo quente-rico-denso, aquilo que faz dos meus discos preferidos insubstituíveis e preciosos.

II

Sempre fui desajeitado com as minhas pessoas-canção. Mas é aqui que a analogia atinge os seus limites. Porque um rasgo na capa de um disco de vinil é apenas tão dolorosa quanto eu quiser que ela seja: até hoje, o vinil não adquiriu consciência de si e não parece importar-se com o desvanecer das cores da capa ou com os riscos que lhes causarmos. O vinil só se magoa se quisermos dar-lhe esse beneplácito. As pessoas-canção, sendo pessoas, sendo mares de textura e ritmo, sentem precisamente a dor que sentem, e não necessitam do beneplácito de alguém para senti-la.

Quando se é desajeitado com as pessoas-canção, com as pessoas-música, como eu, e demasiadas vezes sem ter outra razão além de uma ignorância profunda acerca do lugar que se ocupa no mundo e da capacidade inaudita que temos para a crueldade involuntária, também como eu, este é um dado que devemos tratar com cuidado. Não somos desajeitados com um propósito destruidor e merecemos esse benefício; mas a nossa desajeitação não nos confere mais que esse benefício. E os efeitos dessa desajeitação ficam gravados nas relações, gostemos ou não deles, queiramos ou não reconhecê-los. É importante reconhecer isto. Porque todas as relações, especialmente aquelas que nos fazem ver o mundo a cores, ou com mais cores, ou com mais brilho, têm um limiar de segurança que nunca deve ser ultrapassado.

Tal como um disco demasiado riscado, uma relação demasiado riscada torna-se inaudível e ininteligível. A tribo dos desajeitados faria bem em lembrar-se disto: podemos inventar mil e dois labirintos, filmes, justificações e diatribes; podemos recorrer à desajeitação como razão para darmos golpes nas relações que nos obrigam a rever todos os pergaminhos que vamos escrevendo como mapa-vida; mas o resultado final não muda. O resultado final é sempre doloroso e, nessa altura, "ser desajeitado" serve de pouco. A eternidade não resolve. Só temos uma vida para ouvir estas canções. Só temos uma vida para cuidar delas - há um verbo inglês que encapsula tudo isto, cherish - to treat with tenderness and affection; to nurture with care; to protect and aid -, e é essa vida que precisa de ser vivida.

III

É fácil riscar demasiado um disco de vinil. É por isso que pegamos em discos usados e usamos a luz artificial (se tivermos sorte, a luz solar) para ver riscos e outros defeitos na superfície do disco; se os sulcos originais, a memória física do som, estiverem demasiado cobertos por riscos fortuitos, negligentes, maliciosos ou apenas cruéis, já não queremos o disco. Colocar um disco desses no nosso gira-discos é uma experiência desagradável, a não ser que achemos, na dissonância, uma nova harmonia; nesse caso, os sulcos originais serão despiciendos e a nova memória física é aquela que resulta da fortuna, da negligência, da malícia ou apenas da crueldade. Mesmo desajeitado, não gosto desses discos. Falam de uma humanidade em que já não acredito.

E se fizermos parte dessa humanidade em que já não acreditamos? A questão fica menos clara. Sejamos desajeitados, então. Mas isso não me exime de olhar para a soma dos meus desajeitamentos e reconhecer que não são exactamente desajeitamentos e são demasiado volumosos, demasiado frequentes, para que possa dormir descansado na certeza de que faço parte dessa humanidade-luz cuja vocação é a de cuidar com ternura (essa palavra desprezada) e afecto (outra palavra desprezada), de alimentar, de proteger e apoiar. Porque as pessoas-música não desaparecem de forma subtil; notamos-lhes a perda de imediato, quanto mais não seja porque ocupam mais espaço físico e emocional; sabemos-lhes as curvas e não precisamos de uma agulha ou de um gira-discos, porque elas tocam por si e para si, e nós(eu) somos(sou) agraciado, de vez em quando, com aquele calor-densidade-riqueza, e nem nos(me) ocorre algo tão simples como equacionar a possibilidade de, amanhã, já não termos aquela canção por perto ou de já não sermos capazes de ouvi-la. E é isso que nos faz ver o mundo com menos cor, ou menos detalhe, ou menos brilho.

Mas não será apenas isso. Esse calor-densidade-riqueza só é possível se elas, as pessoas-música, não tiverem que sê-lo; só é possível se for igualmente impossível; só é possível se for opcional e não pudermos exigir. Esse é o cerne, mesmo que nos destrua por dentro. Não posso carregar mais na agulha para que o disco toque mais ou seja mais barulhento. Também não posso exigir mais calor-densidade-riqueza, mais som, melhor som, mais cores, mais brilho. Isso derrotaria o propósito de tudo isto. Isso faria das pessoas-canção feras enjauladas, Fúrias mitológicas à espera de desaparecer, não sem antes cobrarem o quinhão devido pela nossa(minha) violação de um acordo - porque as dádivas não se retribuem, aceitam-se; e podemos ser pessoas-música também, e oferecer tantas dádivas quanto desejarmos, mas essa já será outra história. Aquilo que importa é só isto: não deixar que a superfície das relações que estabelecemos, das relações que nos fazem ver a vida como um entrelaçado brilhante de constelações e outras coisas bonitas, ou com filtros fotográficos que não conheço mas gosto de ver porque transformam a imagem em algo vibrante e consigo, às vezes, imaginar a beleza do mundo com esse filtro nos olhos, ou como um momento passado a admirar a Vitória Alada (ou uma gargalhada partilhada porque não sabemos que um daguerreótipo jaz atrás de uma cortina e eu, feito parvo, finjo admirar o corte delicado da dita cortina, à medida que uma mão expedita se encarrega de me mostrar quão pouco talentoso para o snobismo e a crítica de arte sou, na verdade... dizia eu que aquilo que importa é não deixar que a superfície das relações que estabelecemos fique demasiado riscada ou ferida.

Mas nem sempre podemos impedi-lo. Porque somos desajeitados ou descobrimos uma crueldade involuntária da qual não sabemos fugir; porque nos debatemos com o gato de Schrödinger e o princípio da incerteza; porque o problema da causalidade cumulativa, quando se metem coisas emocionais, é que somos(sou) demasiado estúpidos(de acordo com a terceira lei de ouro da estupidez) para reconhecer o problema na origem e estancar a sangria.

Epílogo

quando o fogo já não arde
quando a fúria soçobra
quando o mundo escurece
de costas voltadas para o pó
de ombros escolhidos para a morte
quando a vida recobra
quando já é demasiado tarde
para que tudo recomece.

porque o vento adianta
porque a mágoa murmura
porque o cometa navega
de cabeça perdida no céu
de corpos tolhidos no mar
porque o perdão já não dura
porque o amanhã já não canta
e nós? [no fim e na entrega]

29/05/2013

Inércia

São estas as rochas inertes
em que debatemos o mundo.

São estas as rochas inertes
devedoras da vida.

São estas as rochas inertes
imersas em fúria vencida.

São estas as rochas inertes
vencedoras do universo profundo.

Em que cortamos as sementes do novo,
porque não vogamos à velocidade das rochas,
e olhamos a inércia em fugas derrotadas
(pelas dobras dos olhos fechados).

São estas as rochas inertes
onde morrem histórias fechadas.

Em que debruamos o destino
a golpe de mágoas separadas
(pelo trilho de passos despidos).

São estas as rochas vazias
onde revemos todos os instantes
                                    [vividos]

São estas as rochas caladas
onde revemos todos os erros
                                    [incorridos]

Foram aquelas as rochas inertes
onde admitimos o silêncio
onde recuperámos a perda
onde respirámos fundo,

para esquecer todas as sílabas sincopadas
e fingir que não desenhamos as nossas formas
                                                           [desesperadas]
enquanto te sentas, à espera de uma fábula.
                                                           [adeus, é desta?]

21/05/2013

Discos III


E podemos descobri-las, a estas pessoas que são, feitas as contas, a banda sonora de uma vida bem vivida, uma vida excelente (se o Aristóteles não se enganou)? Podemos inventar um método ou uma estratégia para facilitar a sua descoberta?

Não, não podemos. Só podemos respeitar a nossa fisionomia. Uma boca, duas narinas, dois olhos e dois ouvidos. Passar demasiado tempo a falar implica não exercer faculdades olfactivas, visuais e auditivas. Passar demasiado tempo a falar significa que temos um modo rígido, pré-definido de interpretar a realidade. E é isso que nos impede de ouvir o groove, o ritmo destas pessoas, destas pessoas ricas, densas e quentes que só podem sê-lo se forem opcionais, se tiverem sempre uma saída possível e nunca estiverem obrigadas por um contrato, formal-informal, a passar um número de minutos definido connosco.

Reparo no carácter inerte dos meus discos. Não é comum que os discos de vinil vagueiem por aí, noctívagos ou diurnos. Também reparo no carácter inerte dos CD que restam por cá; na lista infindável de MP3 que se perdem por este computador adentro. Mas não posso tocar-lhes - não posso agarrar num CD e girá-lo entre as mãos para mudar de lado; posso trocar de MP3 com um toque no teclado e não preciso de prestar atenção à agulha enquanto troco de faixa. É sempre uma questão de cuidado, uma questão de afecto. Não podemos tratar um disco de vinil como tratamos um CD ou um MP3; é uma memória física que precisamos de tratar com delicadeza, não porque os discos exijam essa delicadeza, mas porque é uma das condições necessárias para que possamos respeitá-los como guardiães desse tal som misterioso, quente-rico-denso. E precisamos de tratá-los com delicadeza porque também é isso que faz do seu som algo mais que uma repetição de zeros e uns. São os seus rituais, os nosso rituais, que nos tornam próximos; são as coisas pequenas, como o grão de pó apanhado pela agulha, que tornam o som de um disco eternamente irrepetível. Nenhuma faixa pode ser repetida. Porque depende da forma como colocamos o disco no gira-discos (e do gira-discos em si mesmo); da forma como colocamos a agulha - a pressão, a aspereza (que pode riscar a superfície do disco e danificar-lhe a perfeição), a delicadeza com que a pousamos no disco; a atenção ao estroboscópio, para que o disco possa tocar por si e para si (e para nós, mas nunca para nós em primeiro lugar). São discos únicos e irrepetíveis porque não são representações digitais; são música em si, são canções em si.

E é por aqui que vou. Os discos de vinil não estão nunca inertes. Estão sempre a tocar e só lhes colocamos a agulha para podermos ouvir o que tem para contar-nos. E talvez, se tivermos cuidado, possamos começar a perceber-lhes o carácter irrepetível, o facto de não podermos descobri-los (ou descobri-las), mas de serem eles (e elas) a descobrirem-nos também, ou de ser um processo de descoberta mútua, uma multitude de elementos irrepetíveis, como tocar uma faixa trezentas vezes seguidas sem que ela soe semelhante uma única vez, e deixar que seja essa delicadeza, a delicadeza do silêncio quando também precisamos de deixar um disco repousar (porque não podemos ouvi-lo para sempre, porque há sempre uma audição final, porque o disco pode ficar empanado e choramos porque sabemos que, apesar de podermos continuar a tentar ouvir, o som já não será quente-rico-denso, mas apenas uma memória cacofónica) e, se ele quiser, nunca mais ser ouvido.

Todas as vidas têm uma banda sonora. Todas as bandas sonoras têm temas centrais. E esses temas centrais são sempre espaçosos, eloquentes, grandes e opulentos. Mas as bandas sonoras de uma vida são feitas de outras vidas, vidas de vinil, vidas que não são pilares, vidas que não podemos conceber como inevitáveis ou indispensáveis ou necessárias e suficientes. Essas vidas são a diferença entre uma banda sonora quente-rica-densa - uma vida quente-rica-densa - e uma banda sonora. Toda a gente tem uma. Toda a gente procura uma. Toda a gente tem medo de perdê-la, ou de perder uma pessoa-canção central para si. Raramente pensamos na gente-música que dá tonalidade às coisas fugazes e consegue torná-las menos fugazes, menos repetíveis, menos banais. E nem toda a gente tem medo de perder uma pessoa-canção que não se preocupa com a sua dispensabilidade; que se mantém ausente (embora as ausências também marquem tonalidades, também mudem o ritmo da banda sonora de que fazem parte) ou decide povoar outras paragens; que é demasiado subtil para quem passa demasiado tempo de ouvidos fechados e boca aberta; que é demasiado preciosa para ser preciosa, tem mais brilho porque se recusa a brilhar, é mais quente-rica-densa porque se recusa a ser mais quente-rica-densa. E, porque só pode ser isto tudo se puder ser opcional, se nunca pusermos condições e se nunca nos puser condições, é fácil - demasiado fácil - esquecê-la, ou refazê-la à medida do que as nossas vidas auto-centradas exigem. E, de repente, já não é uma pessoa-canção, mas o refugo de algo importante, mas eu já nem me lembro porque é que estás aqui, o teu prazo de validade venceu, já te dei uso e agora deito-te fora, afinal de contas porque é que és importante, diz lá?, e ela nunca tem resposta, porque não precisa de tê-la, nem de de dá-la, nem de inventá-la, porque nunca ser central é uma bênção maldita, porque ser um disco de vinil na era da velocidade maquinal significa que se recusa a ser dominada por gente obsessiva, e, mesmo que chore em privado (as canções também choram, e quem não acredita que vá ouvir Dylan), há muitas vidas por esse universo fora que precisam de um som quente-rico-denso.

Sim, todas as vidas têm uma banda sonora. Não é que precisemos de música; não é que precisemos de discos de vinil; não é que precisemos de pessoas-canção. A verdade é que elas (a música, os discos de vinil e as pessoas-canção) também não precisam de nós para nada. E é por isso que não podemos descobri-las. São elas que nos descobrem. E são elas que decidem quando ficar e quando partir.

17/05/2013

Discos II

Portanto, se não damos conta, porque não prestamos atenção, porque elas, as nossas pessoas-disco, os nossos discos de vinil, nem sequer pretendem ser essenciais a um sorriso, talvez seja possível viver sem elas. E tem de ser possível, porque, tal como podemos viver sem ler Proust, sem ouvir um riff de Hendrix, sem ir a um cinema ver o 2001 ou o Lawrence da Arábia, também podemos viver sem estas pessoas, não é?

Talvez. Talvez não. Talvez a sua ausência seja umas das razões pelas quais nos sentimos ocos, muitas-demasiadas vezes, apesar de estar tudo em perfeita simetria harmónica-impenetrável-ardente. Mas não podemos dar-nos conta, porque não sabemos que o segredo de uma vida bem vivida está nesses pequenos incrementos, no som mais rico-mais quente-mais denso, e não nas grandes vitórias inefáveis e grandiosas, e não nas pessoas grandes, nas pessoas gigantes, nas pessoas que ocupam o tecido espácio-temporal até não caber mais nada, nas pessoas que julgamos serem os nossos pilares e, na verdade, a bem-dizer, vamos lá a ver, isto é, afinal... são pilares-ilusão. E é nos nossos discos de vinil, nessas pessoas imperceptíveis, nessas pessoas que perdemos como quem perde um brilho irrisório no olhar, que navegamos.

É, certamente, um cliché. Mas os clichés também têm uma história. E, parafraseando David Foster Wallace, os clichés são-no porque encerram verdades terríveis. E a primeira verdade terrível destes peculiares discos de vinil é a sua natureza finita e fugidia. E a segunda verdade terrível destes peculiares discos de vinil é a facilidade com que se ausentam, a facilidade com que nos vemos presos à vontade de buscá-los, persegui-los, porque sabemos que não desejamos possuí-los, nem tê-los, nem dominá-los. Desejamos que eles toquem por si e nos façam fechar os olhos, porque ficamos embevecidos quando se deixam pousar, por um instante esquecidos da sua ausência, esquecidos de serem finitos e fugidios. E são música porque existem e não porque tocam para nós ou por nós, não é? Terceiro cliché. Eu nunca quis um disco de vinil (dos redondos ou dos peculiares) que tocasse para mim.

E talvez seja essa a razão pela qual fenecem e são fugidios (os peculiares); porque, a partir do instante em que pretendemos domá-los, retê-los, torná-los propriedade privada, deixam de ter o som rico, quente, denso que os torna preciosos. Passam a ser lâminas afiadas e um punhal apontado a si mesmos (a nós, portanto). Quarto cliché. São indispensáveis enquanto puderem ser dispensáveis. Só tornam a nossa vida mais viva se puderem não torná-la mais viva. Só tornam a nossa vida mais preciosa se puderem evaporar-se e não estar ali, no último instante onde os vimos.

Sim, talvez seja isso que os torna frágeis. E talvez seja isso, também, que nos torna quebradiços; talvez seja essa a diferença entre agape e phileos. Mesmo que, a cada compasso, sintamos ter perdido um som irrepetível.

12/05/2013

Discos




Afago o disco e sinto os sulcos que a agulha percorre, vibrando, para produzir sons. Fecho os olhos e deixo que a textura negra entre cá dentro. Faço de conta que o meu indicador é uma agulha. Abro os olhos e vejo o gira-discos, inerte. Pauso e penso em todos os discos que me esperam, e numa loja de discos que bem pode ser a fonoteca de Babel.

E penso numa pessoa que me põe a considerar a diferença entre ouvir um disco de vinil e um CD. Como todos os amantes do vinil, sinto o som mais quente, mais cheio, mais denso. Não creio, contudo, que os meus ouvidos sejam suficientemente sensíveis para perceber a diferença. Sei que, ao ouvir o som digital, penso ouvir algo mais frio e impessoal; e percebo que isso pode dever-se ao facto de ser uma tradução em bits da informação que, no vinil, é fisicamente inscrita na superfície do disco. Mas também sei que, salvo algumas excepções honrosas, o ouvido humano não consegue distinguir fundamentalmente entre uma gravação digital feita por um engenheiro competente e uma gravação analógica feita por um engenheiro igualmente competente.

Bem vistas as coisas, o CD é, provavelmente, mais conveniente que o disco de vinil. É mais pequeno, potencialmente eterno e, se a gravação tiver uma qualidade muito elevada, o som pode ser mais detalhado. O disco de vinil é mais frágil, mais pesado, maior e tem um número limitado de rotações (mesmo que, para efeitos práticos, esse número possa nunca vir a ser atingido, ele existe).

Mas não é isso que nos interessa, pois não? Volto a pensar na tal pessoa. E nas coisas que a vida nos ensina. E nas coisas que sentimos ao tocar numa capa, cumprir o ritual de tirar o disco do sleeve, colocá-lo no gira-discos e, com a gentileza de que formos capazes, colocar a agulha no sítio certo para que não se oiçam rasgos, silêncios ou marcas na superfície.

Para que é que precisamos disto, se a qualidade do som está na nossa cabeça e não na superioridade objectiva? Para que é que precisamos disto, se o CD chegava?

E verto a pergunta. Para que é que precisamos de algumas pessoas na nossa vida, se elas não são objectivamente necessárias à satisfação das nossas necessidades e, frequentemente, também não são necessárias à procura de sentido, à procura da felicidade, à procura de tudo aquilo que buscamos?

A resposta está num disco de vinil, penso por agora. Não precisamos de um disco de vinil para ouvir música. Nem sequer precisamos de um disco de vinil para apreciar música ou um detalhe mais ou menos subtil. Mas quem gosta genuinamente de coleccionar discos percebe aquilo que me passa pela cabeça.

Essa não é a questão. Nós fechamos os olhos e cheiramos as capas de discos velhos e novos; nós passamos horas a observar algumas das maiores obras de arte da história da música que ficaram na capa dos nossos LPs; nós tiramos o disco do sleeve com todo o cuidado porque é um ritual; nós pousamos o disco no slipmat como se fosse um sacramento; nós calibramos o braço do nosso gira-discos durante horas porque achamos que sim, isso fará diferença; nós gostamos de cada raspadela e vibração estranha da agulha. Nós não passamos por cima das canções; quando um disco começa, só tiramos a agulha para pousar o braço no suporte, mudar de lado e continuar.

É isso que torna o disco de vinil diferente. E é isso que torna o som mais quente, mais cheio, mais denso. Podia perfeitamente gravar um CD com ficheiros lossless, talvez MP3 com um bitrate elevado, e talvez não desse por nada. Mas não teria cumprido nenhum destes rituais. Não teria tido que montar o meu gira-discos e calibrá-lo; não teria o prazer de olhar para tudo o que uma capa nos dá.

Penso de novo em quem me fez cismar nisto. E penso que não saberia explicar-lhe isto de forma compreensível. Que, a bem dizer, há pessoas dispensáveis da nossa vida e, às vezes, num pestanejar, deixam de ser dispensáveis e passam a ser ausências. Como os discos de vinil, porque dão mais trabalho, porque não são estritamente necessárias, porque nem sequer se importam de estar ausentes e, por vezes, até promovem a sua ausência (com a nossa colaboração) - porque temos tanto em que pensar, e as aparelhagens, agora, deixam-nos passar por cima das canções de que não gostamos. Um pouco como a vida que levamos: já não temos espaço para isto, dá demasiado trabalho e, ainda por cima, nem sequer é estritamente necessário. O CD é mais pequeno, mais portátil, menos inconveniente; o MP3 nem sequer ocupa espaço físico e podemos guardar milhões de ficheiros nos nossos portáteis, nos nossos iPods, nos nossos smartphones. Se não prestarmos atenção e se não quisermos perder tempo, se não quisermos passar horas a calibrar braços e a substituir agulhas, se não quisermos passar horas a afagar a superfície de discos e a sentir o cheiro a tinta e papel das capas, não precisamos de fazê-lo. Não temos que fazê-lo. E continuamos a poder ouvir música; continuamos a poder apreciá-la. Será, apenas, menos rica. Como, muitas vezes, não prestamos atenção, nem sequer damos conta.

Mas são essas pessoas, pessoas como aquela que me fez escrever isto, que tornam as nossas vidas mais quentes, mais cheias e mais densas. São essas pessoas que nos fazem tropeçar em tesouros (são elas os tesouros). Essas pessoas são como as capas dos discos de vinil; são como os sulcos que sentimos nos discos antes de, com cuidado, colocarmos a agulha na sua superfície; e deixamos que o seu som, rico e quente, nos sirva de anjo da guarda.

Se a minha vida fosse música, essas pessoas seriam os meus discos de vinil.

09/05/2013

fogo fátuo

temos sonhos
que (às vezes?) ardem - na bruma
temos dúvidas
e (às vezes?) crepitam - na noite
temos memórias
e (nunca?) tropeçam - no tempo
porque somos de sangue
feitos de sonhos e de bruma
clarões de dúvidas e de noite.

mas não somos de cinza
(ainda sabemos o horizonte)
mas não somos faúlhas
(ainda desfazemos o destino)
mas não somos fogueiras
(já não gravamos ilusões).

e temos florestas
que nos submergem
(somos seres antigos)
e somos pespontos nas estrelas
que nos trespassam o mundo
(somos ruínas de poemas),

porque persistimos e somos arestas
no fado reservado para as árvores
das florestas que temos
dos pespontos que somos,
das ilusões que não gravamos,
e esquecemos o céu
e implodimos em luz
e renascemos todos os dias
                em todas as ruas.

porque bastam agulhas
para que nos trespassem o peito
porque basta um gesto
para que nos afundem o mar
damos tudo (e somos tudo)
para que a perfeição nos ensombre
porque seremos engolidos pela sombra,
porque devemos arder
                                   para que algo renasça.

fogo fátuo e firme,
porque somos espelhos partidos
de maldições abjuradas;
porque nós não temos futuro,
mas encolhemos os ombros, um por um,
porque o fogo-fátuo
não carrega esperanças
                     (goradas).

28/04/2013

Silêncio

"...)Sim, eu quero saber". "O quê? O que queres saber?". "Qual é a medida da solidão, como é que posso medi-la, quantificá-la e torná-la estanque, para que não volte a ameaçar-me". "A medida da solidão? Como se a solidão pudesse ser medida. É uma impressão, aludes-lhe indirectamente, nunca a vês, não a cheiras, não a saboreias nem lhe defines o contorno. É que, para ser possível medi-la, seria necessário desmontá-la. E não podes descobrir o que é estar só, contrariar as tuas pulsões, o teu anti-eremitismo, desvendando a "medida". "Não. Isso é uma mistificação. Posso medi-la; se posso defini-la, também posso estabelecer a quantidade ideal". "Não, não podes. A não ser que estejas apto a incorporar a solidão, a torná-la o teu destino, ela iludir-te-á. É melhor assim. Não conseguimos viver sós. Está cá dentro, é uma urgência, como beber água, combatê-la, esventrá-la até que não nos ameace mais". "Vou medi-la. Vou torná-la tangível e compreendê-la. A medida da minha solidão é a quantidade de palavras que não digo, todos os dias. É o conjunto de silêncios indecifráveis que deixo em casa, e que me apanham desprevenido, em noites lentas. É o sentir-me surdo e esmagado". "Pois. Mas, a não ser que existas em dois universos, precisas de escolher". "O quê?". "Deixo essa descoberta para ti. É tarde, vou voltar para o armário onde tentaste trancar-me".

Daqui. 9 de Fevereiro de 2010. Três anos depois, tudo mudou. (Ou nada mudou). E esta frase continua a assombrar-me. "A medida da minha solidão é a quantidade de palavras que não digo, todos os dias. É o conjunto de silêncios indecifráveis que deixo em casa (...)". Porque foi aí, nesses silêncios, que comecei a perder-me.


Arquipélago

Revisitando e reconsiderando, em dias de tristeza e recobro longínquo

(2007)

o meu coração é um arquipélago
(antigo)
de ilhas encantadas

uma solidão
de ilusões separadas

vagueia pelo mundo esquecido,
sonho duro de inquietude

não está nu, todavia;
é antigo
não enfermo

e não pode afogar-se em mágoa,
pois que se encantou

é todavia possível
que este arquipélago antigo
iluda a morte
com o seu sorrir de histórias
(murmuradas)

o meu coração é um velho vacilante
de mil vozes enlevadas.