20/09/2012

Começar


Prometo que abandono isto tudo, estou farto, é desta, já não consigo. Uma, duas, três vezes. E nunca consigo. Pergunto porquê. E não obtenho resposta. Não há resposta. Não precisa de haver, porque ficarão apenas interrogações.

Percorro uma rua escura, breu, palavras sussurradas, direcção perdida e pouca vontade de encontrar o norte. Talvez as estrelas mo apontem, mas olho-as sem alusões ou intenção.

E lembro-me de quando tudo começou. Lembro-me do sabor a justiça. Lembro-me de ti. Lembro-me do teu olhar regozijado porque não me contive e também não quiseste conter-me. Lembro-me daquele termo de esparguete, depois de uma manhã de trabalho, duro e suado, olhos semicerrados sobre a dureza telúrica, a terra que te acolheu antes de serem horas - só que todas as horas são boas e nenhuma é aguardada - e o pirralho à sombra, esperando, impaciente e sonhador, que te recolhesses. Lembro-me dos músculos secos e de uma camisa aos quadrados, passada a ferro por mãos firmes, uma camisa sem pretensões mas firme como aquelas mãos, a firmeza que vos roubei, o olhar sempre distante que vos furtei e o sabor a justiça que não quero esquecer. E lembro-me. Foi ali que aprendi. Sentas-te numa rocha e observas-me. Eram pingos brilhantes, era um orvalho salgado que tremeluzia no bigode. Palavras parcas e graves, faíscas no olhar, a fúria desaparecida no horizonte, porque, na terra, nesta terra, a fúria pertence ao céu e nós sentimos as nossas raízes, levantados do chão.

Foi assim que começou. Foi nesse instante de partilha que percebi a palavra sacrifício. E é nesse momento que revivo o sabor a justiça. Foi aquele termo de esparguete com frango, feito à pressa, aquele termo vermelho que herdei - e tantos anos durou -, aquela tampa fosca, que me fez revolto. Revolto e revoltado. Porque, se nos habituamos a sermos tratados como seres humanos, esse hábito torna-se sangue e esse sangue torna-se alma. E nunca mais somos iguais ao que éramos. É assim que descobrimos irmãs e irmãos por esse mundo fora. Nunca mais somos iguais ao que éramos para sermos iguais a um mar de ombros, a um oceano de vozes e canções. Porque achaste que eu merecia, apesar de nada ter feito, aquele termo de esparguete com frango, e riste-te durante anos com essa história, e rimo-nos durante toda a vida com esse momento, apesar da minha vergonha e apesar de ter compreendido tarde demais o que significou para ti e para mim. Porque trabalhaste de músculos secos e nunca te queixaste; e se as tuas queixas eram o teu riso, compreendo melhor por que razão aquela canção troou, anos a fio, naquela casa. Para não sermos famélicos, precisávamos de lutar. Para não termos amos, precisávamos de saber que alguém lutou por nós. Que alguém deu o seu quinhão aos filhos e apertou o cinto de couro desbotado para disfarçar a tristeza.

Sábado. Tento conter a comoção. Carrego-te cá dentro, e contigo gerações de gente explorada por outra gente, gente que não sabe de termos com esparguete e frango, gente a quem poderia tentar explicar isto e que se riria de mim. Cá dentro, só cabe gente pobre e sem faladuras caras. Gente doce e amarga, esculpida no vento e macerada pelo ar fétido da fábrica. E canto, apesar de não saber cantar. E a minha voz eleva-se para elevar outras. Tonitruante como a tua. Cantamos os dois. Gritamos os dois. O sabor a justiça ficou-me daquele dia. Daquele dia do termo vermelho em que tudo começou.

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