Eu não estou aqui. Eu não estou em lado algum. Eu sou um esqueleto de etiquetas. Eu sou um monte de esperanças chocadas no vazio. Sou a minha família que desconfia de saber pensar e reflectir e considerar e meditassentir. Sou as minhas amigas que se apanham em corridas montanha acima, sou os meus amigos que se apanham a rebolar montanha abaixo. Estou no meio desta gente toda e sou um nevão que ensimesma por só saber nevar. Eu só sei nevar. Não nasci para estar aqui. Nasci para estar em lado nenhum, hibernavegante num mundo de fatiotas e sotaques imperiais, porque não falo estes idiomas, porque ser bom só, só não chega, e eis que aparecem os apocalipses, estou tão preocupado, estou tão preocupada, estamos tão preocupados contigo, tens tanta coisa aí dentro e em cima dos ombros, sabes tanto, leste tanto, conheces tanto, mas o teu rumorejar não nos convém, porque a era da técnica é implacável. Ou sabes fazer ou extingues-te. Ou sabes realizar ou apagas-te.
Eu extingo-me e ainda sou um empecilho.
Eu apago-me e ainda nada fiz.
Sou um conglomerado de aspirações e incertezas, porque tomo decisões erróneas mas sou brilhante, porque faço coisas estúpidas mas sou excepcional, porque me convidam para escrever sobre coisa nenhuma e sou muito importante num microcosmos que nem o mais imponente dos microscópios de Jansen ou Anton van Leewenhooken (ou lá como se escreve isto, eu sei lá, gosto de nomes estranhos, gosto de coisas esquisitas, nomes evocativos, finjo coleccioná-los para não me sentir só, para sentir que este mundo ainda encerra mistérios e nem está potencialmente do nosso lado da cortina).
Sou um número indeterminado de pontos de interrogação (até me fazem as hastes dos óculos, até me constroem a forma de perceber o choro de um menino birrento, sou todo pontos de interrogação, acho que os meus cabelos não são verdadeiramente encaracolados; estão apenas debruçados sobre o problema da sua própria caducidade, e tão preocupados com insondáveis trivialidades que se encaracolam de forma vil), tem calma, sê sereno, sê tudo o que puderes, estou aqui para ti, estarei ali para ti, sim estás sempre lá para mim, mas nas horas difíceis estive sempre só e tive que ser eu mesmo a limpar as minhas próprias lágrimas. E não há ser tão só como aquele que chora a perda e ainda precisa de ser ele próprio a consolar-se, porque, para lá da porta do quarto andrajoso, o mundo é feio e imundo (mais imundo) e hostil e todas essas coisas com que nos debatemos, porque queremos um mundo belo e versátil e resistente, apesar da evidência óbvia, obviedade evidente, de que o mundo estaria bastante melhor sem seres humanóides.
Não, eu não estou aqui, ali, aí, em lado algum. Eu não estou do lado da técnica e quero rezar, mas não sei a quem ou a quê. Olho para o lado e vejo milhares de crentes no culto da maçã, rezas intermináveis a um deus deuzinho, escondido no bolso, aplicações para saber se deus existe é que nenhuma, embora desse jeito, e dar jeito é coisa fundamental, é o nec plus ultra de tudo, só existimos se dermos jeito e soubermos vender a alma. Eu estou do lado da alma precária e preciso de chorar. E preciso de saber se este mundo é encantado e medir-lhe o encantamento e injectar-lhe encantamento, a ver se descubro o coração das trevas e o transformo em coração de outra coisa qualquer. Tem calma, sê sereno, o povo é sereno, o povo é isto e aquilo e tudo o que nós quisermos, mas precisamos de ter uma função, precisamos de competir e ter coeficientes, se me meter dentro de um computador será que ele me decifra?, é o que lhes pergunto, aos alquimistas da razão, aos religiosos dos coeficientes.
Eu não estou aqui. Eu não estou em lado algum. Eu não sei fazer nada e vim para terras inóspitas saber se não fazer nada me podia satisfazer. E não tenho atalhos.