25/09/2012

Respeitinho


Ecos de Madrid. Ecos de podridão e bravura. Sons de fúria e retalhos de luz. Retiraram a força nas pernas a alguém cheio ou cheia de força onde interessa, no coração. Porque, leio algures, a maior força do mundo é a alma humana em chamas. Tirem-nos as pernas, e lutaremos. Tirem-nos tudo, e lutaremos. Tirem-nos a dignidade, e venceremos. Não sei à custa de quê. À custa de pernas espezinhadas, certamente. À custa de gente perdida e morta e assassinada nos confins da memória, porque é assim que se constroem as vontades: também em capelas de ossos, mas ossos duros, ossos a vermelho vivo. Porque talvez necessitemos de sangrar para que o sangue cubra a terra e a terra seja sangrenta e expurgada. Talvez aquela gente, aquela gente dos carros blindados, aquela gente que se cobre de glória nos Montes Olimpo da nossa era, aquela gente viciosa que se pavoneia em novos Espelhos Meus, agora nomeados de novo, assessores, que afiançam não haver gente mais bela que esta, sim, talvez aquela gente se compadeça e aceite parar com a sangria. E talvez seja esse o dia em que, sem pernas e sem honra, sem força e cheios de dor, nos uniremos. Não podem tirar-nos a dignidade. Não podem decretar-nos para fora da existência. Mas tentam. Tentam fazer-nos cigarras e formigas. Tentam desbastar-nos porque somos de rocha. Tentam fazer tudo e acabam a fazer um irrisório nada, (para esta gente, é sempre uma imensidão de nada) a tornar almas flamejantes, a dar ignição à utopia. E nascem-nos novas pernas, porque serei eu a levar-te, caso não consigas andar; serás tu a pegar em mim, caso eu já não possa levantar-me; seremos duas rimas de um poema, seremos mundos maiores que este mundo, e diremos não. Chega. Basta. Não. Isto não. Já basta. Quero viver. Quero que ela viva ao meu lado. Quero que ele cante ao meu lado. E vocês, gente de carros fumados e espelhos untuosos, estão à espera. Não vos bastou. Nada vos basta. Convenceram-nos de que a injustiça é justa, de que matar o pensamento é justo, de que despejarmos ácido na cara uns dos outros para ganhar mais uns cobres é justo, de que há demasiada justiça no mundo e, portanto, vai sendo tempo de nos transformarmos num mundo de facínoras e assassinos. Assassinos da vontade, da dignidade e de um caminho luminoso. Talvez precisemos de saborear o sangue da terra ensanguentada para nos arrependermos. Talvez precisemos de olhar para a Pietá milhões de vezes, talvez precisemos de ser Maria, de ter o filho, de Deus ou de um deus qualquer, perfurado e torturado para redescobrir a capacidade preciosa de gritar, dizer não, dar as mãos, roçar os ombros, vamos para cima, gritemos para lá, que não podemos viver toda a vida nisto, neste opóbrio, olho para ti e vejo uma vida que merece ser vivida sem lágrimas, vamos vivê-la, vamos lutar, porque choras?, é preciso, é preciso lutar, mesmo que agora não vejamos a luz, vê-la-emos daqui a nada, está de mãos dadas com a dignidade que não podem tirar-nos.

*

Não sabemos o que esperar, quando estamos lá fora. Não sei o que sentir, estando cá fora. Quero sentir o cheiro da liberdade, mas não sei se ela se disfarça, à esquina, para nos enganar. Quero saber que os nossos ombros se unem, mas também não sei se o fazem. Creio. Tenho que crer. Tiram-nos tudo, menos a dignidade. É com a dignidade, com a alma em chamas e maior que o pensamento, que faremos tudo de novo, que escreveremos outra história. Uma história que possa ser contada e cantada.

*


O respeitinho mata-nos. Afoga-nos. Enforca-nos. Mas só o compreenderemos quando já estivermos podres, mortos, afogados e enforcados. É este respeitinho que nos entope as veias e embarga a voz. É este respeitinho que seca mentes e verdades, que nos paraliza e torna ociosos perante o mal. É o respeitinho que nos diz, ao ouvido, sublime e sibilino, "não tomo posição porque estou acima disto"; "não digo nada porque já combati que baste"; "isto não me afecta e não vou dizer nada". É o respeitinho que torna a apatia um oceano. Foi o respeitinho, também sublime, que fez definhar a terra de Kant e nascer um Führer. E hipnotizar Heidegger ou Riefenstahl. É este respeitinho que nos submete, achincalha, algema e destrói. É esta vontade intensa de pulsões sebásticas que nos torna sôfregos por um herói, um herói que traga ordem, que salve, a salvação ali ao lado, mesmo que ela implique vergastas e dor interminável. Porque temos medo de perder o respeitinho, de perder a ideia-mãe de todas as relações que nos mantiveram vivos, de nos sentirmos nus e recém-nascidos num oceano desconhecido, com uma baleia branca à espreita, com um Leviatã ali tão perto, e tudo porque decidimos levantar a voz, deixar o respeitinho a dormir. Respeitemos o seu sono eterno. Deixemo-lo dormir. Cumpriu-se. Fez. Deixemo-lo. Foram quarenta e oito anos de noite profunda, fundados com o respeitinho pelas botas e pelos votos de pobreza.  Talvez não baste deixá-lo dormir. Não. É preciso matá-lo. É preciso crivá-lo de perguntas até que exale um suspiro final. Até que entre num estertor e morra de dor. Até que não seja mais do que já provou ser: uma memória bafienta de tempos tenebrosos.

Basta de respeitinho. Basta de respeitinho podre. Basta de desligarmos as mentes quando alguém fala de nariz firme e voz escorreita. Duvidemos. Duvidemos de tudo e perguntemos sobre tudo. O respeitinho assassinou-nos e precisamos de matá-lo. Precisamos de outra coisa qualquer.

20/09/2012

Começar


Prometo que abandono isto tudo, estou farto, é desta, já não consigo. Uma, duas, três vezes. E nunca consigo. Pergunto porquê. E não obtenho resposta. Não há resposta. Não precisa de haver, porque ficarão apenas interrogações.

Percorro uma rua escura, breu, palavras sussurradas, direcção perdida e pouca vontade de encontrar o norte. Talvez as estrelas mo apontem, mas olho-as sem alusões ou intenção.

E lembro-me de quando tudo começou. Lembro-me do sabor a justiça. Lembro-me de ti. Lembro-me do teu olhar regozijado porque não me contive e também não quiseste conter-me. Lembro-me daquele termo de esparguete, depois de uma manhã de trabalho, duro e suado, olhos semicerrados sobre a dureza telúrica, a terra que te acolheu antes de serem horas - só que todas as horas são boas e nenhuma é aguardada - e o pirralho à sombra, esperando, impaciente e sonhador, que te recolhesses. Lembro-me dos músculos secos e de uma camisa aos quadrados, passada a ferro por mãos firmes, uma camisa sem pretensões mas firme como aquelas mãos, a firmeza que vos roubei, o olhar sempre distante que vos furtei e o sabor a justiça que não quero esquecer. E lembro-me. Foi ali que aprendi. Sentas-te numa rocha e observas-me. Eram pingos brilhantes, era um orvalho salgado que tremeluzia no bigode. Palavras parcas e graves, faíscas no olhar, a fúria desaparecida no horizonte, porque, na terra, nesta terra, a fúria pertence ao céu e nós sentimos as nossas raízes, levantados do chão.

Foi assim que começou. Foi nesse instante de partilha que percebi a palavra sacrifício. E é nesse momento que revivo o sabor a justiça. Foi aquele termo de esparguete com frango, feito à pressa, aquele termo vermelho que herdei - e tantos anos durou -, aquela tampa fosca, que me fez revolto. Revolto e revoltado. Porque, se nos habituamos a sermos tratados como seres humanos, esse hábito torna-se sangue e esse sangue torna-se alma. E nunca mais somos iguais ao que éramos. É assim que descobrimos irmãs e irmãos por esse mundo fora. Nunca mais somos iguais ao que éramos para sermos iguais a um mar de ombros, a um oceano de vozes e canções. Porque achaste que eu merecia, apesar de nada ter feito, aquele termo de esparguete com frango, e riste-te durante anos com essa história, e rimo-nos durante toda a vida com esse momento, apesar da minha vergonha e apesar de ter compreendido tarde demais o que significou para ti e para mim. Porque trabalhaste de músculos secos e nunca te queixaste; e se as tuas queixas eram o teu riso, compreendo melhor por que razão aquela canção troou, anos a fio, naquela casa. Para não sermos famélicos, precisávamos de lutar. Para não termos amos, precisávamos de saber que alguém lutou por nós. Que alguém deu o seu quinhão aos filhos e apertou o cinto de couro desbotado para disfarçar a tristeza.

Sábado. Tento conter a comoção. Carrego-te cá dentro, e contigo gerações de gente explorada por outra gente, gente que não sabe de termos com esparguete e frango, gente a quem poderia tentar explicar isto e que se riria de mim. Cá dentro, só cabe gente pobre e sem faladuras caras. Gente doce e amarga, esculpida no vento e macerada pelo ar fétido da fábrica. E canto, apesar de não saber cantar. E a minha voz eleva-se para elevar outras. Tonitruante como a tua. Cantamos os dois. Gritamos os dois. O sabor a justiça ficou-me daquele dia. Daquele dia do termo vermelho em que tudo começou.