02/06/2013

Discos IV

I

Sempre fui desajeitado com os meus discos. De uma maneira ou de outra, consigo deixá-los cair, riscá-los ou rasgar-lhes as capas - às vezes, um rasgo pequeno, imperceptível; outras, um rasgo que destroça o valor estético da capa. Isto sucede, especialmente, com os discos de que gosto mais; são os discos que me levam a ter cuidados particulares com a colocação da agulha e, invariavelmente, a falhar. Não sei por que razão isto acontece. Procuro usar de cuidados especiais e raramente resulta; o braço do gira-discos resvala, grãos de pó invisíveis perturbam a agulha ou um movimento incauto faz trepidar o móvel onde o gira-discos repousa.

Talvez seja por isto que esses discos são sempre os primeiros a desaparecer, subtis, porque as pilhas de tralha escondem o seu brilho e não consigo dar conta da sua desaparição. Só muito mais tarde, só tarde demais, quando não posso preparar-me para delinear o espaço vazio, é que me apercebo de uma falha, três milímetros a menos por ali, e tenho mais uma colina íngreme a percorrer.

Não há discos substituíveis. Cada um tem a sua história; cada um tem as suas mágoas. Desajeito-me com os meus discos favoritos e, às vezes, esqueço-os; e, às vezes, isso tem consequências. Às vezes, retenho apenas as memórias dos riscos e dos rasgos, esquecendo a música, o segredo quente-rico-denso, aquilo que faz dos meus discos preferidos insubstituíveis e preciosos.

II

Sempre fui desajeitado com as minhas pessoas-canção. Mas é aqui que a analogia atinge os seus limites. Porque um rasgo na capa de um disco de vinil é apenas tão dolorosa quanto eu quiser que ela seja: até hoje, o vinil não adquiriu consciência de si e não parece importar-se com o desvanecer das cores da capa ou com os riscos que lhes causarmos. O vinil só se magoa se quisermos dar-lhe esse beneplácito. As pessoas-canção, sendo pessoas, sendo mares de textura e ritmo, sentem precisamente a dor que sentem, e não necessitam do beneplácito de alguém para senti-la.

Quando se é desajeitado com as pessoas-canção, com as pessoas-música, como eu, e demasiadas vezes sem ter outra razão além de uma ignorância profunda acerca do lugar que se ocupa no mundo e da capacidade inaudita que temos para a crueldade involuntária, também como eu, este é um dado que devemos tratar com cuidado. Não somos desajeitados com um propósito destruidor e merecemos esse benefício; mas a nossa desajeitação não nos confere mais que esse benefício. E os efeitos dessa desajeitação ficam gravados nas relações, gostemos ou não deles, queiramos ou não reconhecê-los. É importante reconhecer isto. Porque todas as relações, especialmente aquelas que nos fazem ver o mundo a cores, ou com mais cores, ou com mais brilho, têm um limiar de segurança que nunca deve ser ultrapassado.

Tal como um disco demasiado riscado, uma relação demasiado riscada torna-se inaudível e ininteligível. A tribo dos desajeitados faria bem em lembrar-se disto: podemos inventar mil e dois labirintos, filmes, justificações e diatribes; podemos recorrer à desajeitação como razão para darmos golpes nas relações que nos obrigam a rever todos os pergaminhos que vamos escrevendo como mapa-vida; mas o resultado final não muda. O resultado final é sempre doloroso e, nessa altura, "ser desajeitado" serve de pouco. A eternidade não resolve. Só temos uma vida para ouvir estas canções. Só temos uma vida para cuidar delas - há um verbo inglês que encapsula tudo isto, cherish - to treat with tenderness and affection; to nurture with care; to protect and aid -, e é essa vida que precisa de ser vivida.

III

É fácil riscar demasiado um disco de vinil. É por isso que pegamos em discos usados e usamos a luz artificial (se tivermos sorte, a luz solar) para ver riscos e outros defeitos na superfície do disco; se os sulcos originais, a memória física do som, estiverem demasiado cobertos por riscos fortuitos, negligentes, maliciosos ou apenas cruéis, já não queremos o disco. Colocar um disco desses no nosso gira-discos é uma experiência desagradável, a não ser que achemos, na dissonância, uma nova harmonia; nesse caso, os sulcos originais serão despiciendos e a nova memória física é aquela que resulta da fortuna, da negligência, da malícia ou apenas da crueldade. Mesmo desajeitado, não gosto desses discos. Falam de uma humanidade em que já não acredito.

E se fizermos parte dessa humanidade em que já não acreditamos? A questão fica menos clara. Sejamos desajeitados, então. Mas isso não me exime de olhar para a soma dos meus desajeitamentos e reconhecer que não são exactamente desajeitamentos e são demasiado volumosos, demasiado frequentes, para que possa dormir descansado na certeza de que faço parte dessa humanidade-luz cuja vocação é a de cuidar com ternura (essa palavra desprezada) e afecto (outra palavra desprezada), de alimentar, de proteger e apoiar. Porque as pessoas-música não desaparecem de forma subtil; notamos-lhes a perda de imediato, quanto mais não seja porque ocupam mais espaço físico e emocional; sabemos-lhes as curvas e não precisamos de uma agulha ou de um gira-discos, porque elas tocam por si e para si, e nós(eu) somos(sou) agraciado, de vez em quando, com aquele calor-densidade-riqueza, e nem nos(me) ocorre algo tão simples como equacionar a possibilidade de, amanhã, já não termos aquela canção por perto ou de já não sermos capazes de ouvi-la. E é isso que nos faz ver o mundo com menos cor, ou menos detalhe, ou menos brilho.

Mas não será apenas isso. Esse calor-densidade-riqueza só é possível se elas, as pessoas-música, não tiverem que sê-lo; só é possível se for igualmente impossível; só é possível se for opcional e não pudermos exigir. Esse é o cerne, mesmo que nos destrua por dentro. Não posso carregar mais na agulha para que o disco toque mais ou seja mais barulhento. Também não posso exigir mais calor-densidade-riqueza, mais som, melhor som, mais cores, mais brilho. Isso derrotaria o propósito de tudo isto. Isso faria das pessoas-canção feras enjauladas, Fúrias mitológicas à espera de desaparecer, não sem antes cobrarem o quinhão devido pela nossa(minha) violação de um acordo - porque as dádivas não se retribuem, aceitam-se; e podemos ser pessoas-música também, e oferecer tantas dádivas quanto desejarmos, mas essa já será outra história. Aquilo que importa é só isto: não deixar que a superfície das relações que estabelecemos, das relações que nos fazem ver a vida como um entrelaçado brilhante de constelações e outras coisas bonitas, ou com filtros fotográficos que não conheço mas gosto de ver porque transformam a imagem em algo vibrante e consigo, às vezes, imaginar a beleza do mundo com esse filtro nos olhos, ou como um momento passado a admirar a Vitória Alada (ou uma gargalhada partilhada porque não sabemos que um daguerreótipo jaz atrás de uma cortina e eu, feito parvo, finjo admirar o corte delicado da dita cortina, à medida que uma mão expedita se encarrega de me mostrar quão pouco talentoso para o snobismo e a crítica de arte sou, na verdade... dizia eu que aquilo que importa é não deixar que a superfície das relações que estabelecemos fique demasiado riscada ou ferida.

Mas nem sempre podemos impedi-lo. Porque somos desajeitados ou descobrimos uma crueldade involuntária da qual não sabemos fugir; porque nos debatemos com o gato de Schrödinger e o princípio da incerteza; porque o problema da causalidade cumulativa, quando se metem coisas emocionais, é que somos(sou) demasiado estúpidos(de acordo com a terceira lei de ouro da estupidez) para reconhecer o problema na origem e estancar a sangria.

Epílogo

quando o fogo já não arde
quando a fúria soçobra
quando o mundo escurece
de costas voltadas para o pó
de ombros escolhidos para a morte
quando a vida recobra
quando já é demasiado tarde
para que tudo recomece.

porque o vento adianta
porque a mágoa murmura
porque o cometa navega
de cabeça perdida no céu
de corpos tolhidos no mar
porque o perdão já não dura
porque o amanhã já não canta
e nós? [no fim e na entrega]

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