30/12/2010

A ponte que não era ponte


Portanto, talvez este retrocesso signifique qualquer coisa. Talvez resolva os nós górdios. E talvez cauterize os borbotões de fúria que crepitam debaixo da pele. A raiva, essa, evanescente, desapareceu. A fúria está aqui, estrepita, sedenta de esperneio. Mas não te dou a autorização que almejas, pelo que podes sentar-te, reler as estrelas e aguardar melhores dias. Garanto-te que virão.

Pode não significar nada. Reconhecer a miragem não lhe retira atractividade. Continuamos a esmagar-nos mutuamente por miragens todos os dias repetidas na televisão, miragens que sabemos serem-no, ilusões prestimosas que passam por shot de irrealidade, ou cigarro de ópio, ou riscos de ouro branco. Mas é duro.

Soam os trovões e continuo a cismar. No que não foi e podia ter sido. No que foi e podia não ter sido. No que não foi e não podia ter sido. Dizem-me que devo tirar ilações. Concluir, extrair silogismos.

Mas para quê? Porque é que os seres humanos são avessos a questões abertas? Why the fuck do we require closure to get by? Não, não preciso de tirar ilações; preciso, somente, de pensar. De pousar a mente e aquietá-la, para que as luzes não a perturbem, enquanto encadeia uma e outra ideia. Para que narre uma versão, a sua versão, não precisa de ser a melhor, a mais polida, a mais crua ou a mais convincente, apenas a versão de si-mesma, a proximidade menos estranha, para que os caminhos sejam menos sinuosos, para que as vontades sejam menos indomáveis, para que a solidão pareça cada vez menos venenosa.

E, enquanto recolho os despojos da guerra, desse atordoado conflito que trespassou o meu corpo-país, tento recobrar, remendar, remediar, recurar, tudo o que julgávamos ter ficado, e não ficou.

É que, hoje, fiquei com outra impressão. De que ambos estávamos iludidos. Pensávamos que o nosso segredo era a cumplicidade. Mas já não temos segredos, porque a cumplicidade se esvaiu. E ficámos presos a uma recordação.

Volto a ficar só. Fiquei preso. E "é normal". "É normal" que assim seja. E pegamos nas pernas e pagamos a um batalhão de psiquiatras que nos desnormaliza, renormaliza e anormaliza.

Penso que nunca mais sairei desta prisão. E penso mal. E torno a pensar bem - noites escuras há muitas, tudo depende dos nossos olhos e da sua preparação. Não somos lemures, bem-entendido, mas somos primatas complexos, podemos preparar-nos.

"Eu achava que isto ia ser para sempre", diz ele. És estúpido, é o que é. Que isso do "para sempre" foi escavacado pelo Einstein, depois pela menina do café onde ias tomar um bagaço surripiado a vontades alheias e, finalmente, pelo Programa de Estabilidade e Crescimento. O "para sempre" não é teu, nem poderia sê-lo. Que a solidão é mais difícil de enfrentar quando é só nossa; terrível destino para gente que se considera boa, boazinha, tão-tão boazinha que se molha ao oferecer comida quente, só o emprego é que não, nãonãonão, nem ideias, nem pensa-por-ti, muito menos livros, bombas nem pensar, porque fora da caixa é para os bons, os lavadinhos. E tergiverso.

Voltando à terra e ao tom diarístico, agora que os bisbilhoteiros, acossados pela dose cavalar de texto críptico e incompreensível, debandaram. Descobri que era uma ilusão. A pior das ilusões, a de uma cumplicidade que existiu, de tão palpável, de tão crível que era, e, como síncope do coração do mundo, esfumou-se.

Porque é que o ser humano consegue travestir a sua vida em farsa e, mesmo assim, erguer o nariz, em tom desafiapedante? E porque é que enviei emails em borbotão, tentando reerguer uma ponte desfeita onde já não há solo para plantar nem uma árvore?

Uma tentativa, e outra. Talvez não possa reerguer esta ponte. Terei chegado tarde demais, depois de me embrenhar na floresta do remorso. Certo é que já não há solo. Nem mesmo margem. Nem outro país com o qual construir algo de novo.

Desapareceu, simplesmente.

27/12/2010

Noite Escura


(algures na primeira década do séc. XXI)

Quando nos perdemos,
nesta noite escura,
os nossos corações
eram um choro
que se despedia.

E éramos, uma vez mais,
duas notas dissonantes
dois astros discordantes.

Quando nos recolhemos,
nesta noite escura,
os nossos olhos
já não eram um silêncio
que se assobia.

E escondemos as mágoas,
porque as despedidas
sabem velar a saudade.

Quando nos desconhecemos,
nesta noite escura,
os nossos corpos
eram rios
que desdenhavam a alegria.

E calámo-nos,
porque o nosso segredo
é a cumplicidade.

Quando esquecemos,
nesta noite escura,
os nossos medos
já só eram espíritos
ansiando por magia.

E separámo-nos,
ativemo-nos um momento.
Afluindo ao mesmo futuro,
confessávamos, entredentes.

Que, nesta noite escura,
tu e eu somos seixos
molhados pelas lágrimas
das estrelas cadentes.

26/12/2010

Os Quinhenteuristas ou Mandar uma Geração Inteira à Merda

Mais uma recuperação do Zen e a Arte de Divagar

Os Quinhenteuristas ou Mandar uma Geração Inteira à Merda

Quarta-feira, 13 de Janeiro de 2010

Começa aqui. Li isto e fiquei possesso.

Depois, pensei em fazer um comentário a este post, mas alongou-se, tal era a minha fúria, e prefiro deixar aqui, a título da posteridade e das gerações futuras que me encarregarei de aviltar, se me tornar num velho jarreta e insuportável.


Quer então dizer que as gerações precedentes podem dar a desculpa do contexto ("eles é que nos roubam"; "a economia é que está mal"; "este país não funciona"), mas a geração hi5 não? A culpa de tudo o que acontece à geração hi5 é da geração hi5?

Esta conversa faz-me lembrar certos passageiros de transportes públicos. "Esta juventude está perdida, não têm valores, não têm objectivos". Pois é. Mas, que eu saiba, esta juventude surgiu por causa de quem agora diz que está perdida. Que ainda não somos andróides emanados de casulos assexuados, acho eu.

E, se há alterações climáticas, se há desequilíbrios estruturais na economia, se há desaceleração demográfica, se os valores se perdem, não é por responsabilidade da juventude 16-25. Contra mim falo, que andei anos a tentar dizer aos meus colegas de faculdade que era preciso dialogar, se necessário lutar contra as injustiças criadas por estruturas sociais erigidas pelas gerações precedentes, que se queixam da falta de valores da juventude, mas que não são capazes de olhar para o espelho e perceber que a disfunção social/institucional decorre da sua própria inércia, incompetência e cobardia. Fiz parte de associações, nem sempre com sucesso, mas sempre com disponibilidade. E nem todos os jovens estão perdidos ou desinteressados. Estão, sim, desinteressados num quadro institucional que premeia a incompetência, a mediocridade, as cunhas (nas suas várias degenerescências), a antiguidade (que é um posto arcano) e a arrogância autoritária das mentalidades que, caso fosse possível, encerraria no Museu de Arte Antiga.

É de pessoas reais, palpáveis, tangíveis, de que vocês falam. Pessoas que nasceram depois da dívida portuguesa ao FMI, pessoas que nasceram depois ou durante o cavaquismo, pessoas que nasceram depois da adesão de Portugal à CE/CEE/UE, pessoas que nasceram depois da queda do Muro, pessoas que nasceram depois do VOSSO consenso de Washington, pessoas que nasceram depois do VOSSO devorismo, pessoas que vivem imersas num caos pessoas que são obrigadas a ficar em casa dos pais porque não conseguem subsistir sozinhas - acho inacreditável que considerem todos os jovens 16-25 preguiçosos ao ponto de quererem limitar a sua própria autonomia -, pessoas que podem não ter referenciais normativos aceitáveis para vocês, mas que tentam construir algo para si mesmas. Queria ver-vos sujeitarem-se aos callcenters, a distribuir flyers à chuva e aos falsos recibos verdes. Falam todos do alto da vossa sapiência, atribuindo responsabilidade total aos 16-25 pela sua situação e destino, mas divorciam-se das vossas responsabilidades.

Acho incrível que insistam em comparar a minha geração, os "millenials", a "Y", a hi5, a facebook, a 16-25 (já estou no último ano de pertença, vá lá...), à geração rasca e às gerações precedentes. Que eu saiba, a geração rasca não pagou as propinas que eu tive que pagar com o meu trabalho. E sabem o que é pior? É que eu trabalhei e, mesmo assim, fui obrigado a ficar em casa dos meus pais, porque, mesmo trabalhando, não podia ter uma casa e pagar os meus estudos. Era uma ou outra. Eu e os meus colegas, que também não puderam ficar em casa a coçar a micose, enquanto o Estado lhes dava bolsas de investigação, mestrado e doutoramento, para ficarem quase uma década a fazer ponta de corno - enquanto nós, os 16-25, recebemos a mesma bolsa que vocês, mas sem ajustes à inflação ou ao custo de vida, para nos esfalfarmos a ser escravos da vontade dos baby-boomers e dos "rascas" que lhes herdaram os tiques autoritários. E temos medo. Temos medo porque NÃO queremos voltar para casa dos pais. Porque queremos a nossa independência e não queremos copiar as frases dos outros, ao contrário do que é dito no post.

Também não pudemos beneficiar das reformas estruturais da administração pública, que deram emprego a muitos membros da dita "geração rasca".

Já que fiz disto um manifesto mais longo que o post original, volto a frisar o mesmo ponto: vocês insistem na nossa responsabilidade total perante a nossa situação, mas referem-se sempre aos "eles", à vossa situação como efeito directo e insofismável de uma conspiração global contra os vossos interesses, os vossos sonhos e desejos.

É sempre fácil dizer que a situação dos outros é responsabilidade unica e exclusivamente sua, ao passo que a nossa é atribuível a outrém, a um ente conspirador e malévolo. Porque "nós" temos valores, temos projectos, temos vontades, temos vidas e temos legitimidade para exigir. Vocês, os putos, os jovens, os precários, os preguiçosos, os indigentes mentais, os 16-25, os facebook/hi5 freaks, queixam-se de quê? Vocês têm tudo, têm Internet, têm iPhone, têm Playstations, cinema 3d, preservativos com sei lá quantos sabores, viagens low-cost para Ibiza, Copenhaga e Paris; estão a queixar-se do quê? Vocês só querem é ronha, ficar em casa com a cama lavada e comida da mamã na mesa, com os vossos canudos e os vossos mestrados, são todos blasés mas nem sabem abrir uma conta num banco.

É isto que se pensa? É mesmo?

Porque eu, que trabalho num Centro que inclui um Gabinete de Inserção Profissional - e estou a perder minutos preciosos de trabalho para escrever isto em resposta a um post que desqualifica todas as instâncias de apoio - não vejo isso. Não vejo jovens 16-25 despreocupados. Não vejo jovens 16-25 sem valores. Vejo olhos envidraçados de vergonha. Vejo tristeza. Vejo miúdos e miúdas esmagados pelo desemprego e pela manutenção do limbo, do não sair nunca da casa dos pais, cujo carinho não basta.

Falta de objectivos? Falta de coragem? Acham que é falta de coragem ir trabalhar para um callcenter? Já lá estiveram? Sabem o que é? Acham que é ter falta de objectivos querer um trabalho durante mais que a merda de um período de 6 meses? Também queremos ter famílias, emprego certo e falar de barriga cheia como vocês. Também queremos ter o vosso ennui burguês. Mas não podemos.

Mas nunca aceitarei que chamem, à minha geração, a "geração perdida", a "geração quinhenteurista" ou a geração "do desinteresse, da falta de valores, de coragem e de objectivos". Querem ter pena, querem criticar-nos, pois critiquem com quantas balas tiverem. Eu faço parte da geração 16-25 e recuso-me a aceitar estas críticas estúpidas de quem não tem pejo em dizer que, se alguma vez teve dificuldade na vida, foi por culpa "deles" e que tem muito bons valores, objectivos, projectos e o raio que parta.

Como medir a solidão

Também recuperado do Zen e a Arte de Divagar


"(...)Sim, eu quero saber". "O quê? O que queres saber?". "Qual é a medida da solidão, como é que posso medi-la, quantificá-la e torná-la estanque, para que não volte a ameaçar-me". "A medida da solidão? Como se a solidão pudesse ser medida. É uma impressão, aludes-lhe indirectamente, nunca a vês, não a cheiras, não a saboreias nem lhe defines o contorno. É que, para ser possível medi-la, seria necessário desmontá-la. E não podes descobrir o que é estar só, contrariar as tuas pulsões, o teu anti-eremitismo, desvendando a "medida". "Não. Isso é uma mistificação. Posso medi-la; se posso defini-la, também posso estabelecer a quantidade ideal". "Não, não podes. A não ser que estejas apto a incorporar a solidão, a torná-la o teu destino, ela iludir-te-á. É melhor assim. Não conseguimos viver sós. Está cá dentro, é uma urgência, como beber água, combatê-la, esventrá-la até que não nos ameace mais". "Vou medi-la. Vou torná-la tangível e compreendê-la. A medida da minha solidão é a quantidade de palavras que não digo, todos os dias. É o conjunto de silêncios indecifráveis que deixo em casa, e que me apanham desprevenido, em noites lentas. É o sentir-me surdo e esmagado". "Pois. Mas, a não ser que existas em dois universos, precisas de escolher". "O quê?". "Deixo essa descoberta para ti. É tarde, vou voltar para o armário onde tentaste trancar-me".

A realidade é como a heroína

Recuperado do Zen e a Arte de Divagar


"Então, comunista, como estás?". "Acho que acreditar em [inserir ideal utópico e secundário para as prioridades da intelectualidade urbana] demonstra a existência de uma esquerda festivaleira". "Sim, eu voto neles. Já agora, viste que horror é aquele cabelo seboso, aquela camisa barata, aquele perfume malcheiroso?".

Já não se pode afirmar que o mercado não é infalível. Que o sistema financeiro é composto por pessoas e algoritmos nos quais não se deve depositar confiança total. Também não podemos dizer que a igualdade é um princípio ético primaz. Não nos podemos dar ao luxo de acreditar na redistribuição da riqueza, na existência de coisas tão soezes como o ordenado mínimo, o subsídio de desemprego ou um regime fiscal progressivo. Não. A água também pode ser mercadorizada e privatizada. A educação e a saúde constituem sectores não-estratégicos. A energia? Que se privatize, o mercado manda, mesmo que passe os dias no psiquiatra, à espera de orientação. O ar? A terra? Não, não podemos afirmá-lo, dizê-lo seria uma radicalidade, relevá-lo seria provocar os poderes opacos, as eminências pardas sabedoras da incerteza.

Abanamos a cabeça e sonegamos, às evidências, a sua condição transformadora. Preferimos concentrar-nos em que nos está próximo. Em quem nos acompanha neste combate. Preferimos balear os nossos irmãos. Preferimos violar as nossas irmãs. Com o nosso silêncio, cavamos um buraco negro. Criamos a nossa própria extinção.

Chamam-me comunista, ainda que não conteste a propriedade privada. Chamam-me comunista porque consideram tal epíteto uma provocação suave, não desabrida, uma palavrinha torpe e simpática, que me caracteriza, empacota e define. Para que possam estabilizar-nos. Para que sejamos menos ameaçadores. É por isso que somos zapatistas. Que somos comunas, esquerdalhos e palestinianos. Fixados, não podemos feri-los. Somos animais no jardim zoológico: não conseguimos queixar-nos, porque não falamos as suas línguas, os seus dialectos pitagóricos. Deixamos de estar certos. Pensamos que devemos quedar-nos em silêncio, dúvidas ancestrais que nos pressionam as têmporas, será isso preferível a deixar-me enredar neste novelo de certezas?, talvez seja, talvez prefira ter medo e contradizê-lo, não, não sou um comunista, como podes dizê-lo?, no íntimo, é uma vergonha, talvez não no íntimo, mas, em todo o caso, pelo menos, na hipoderme, suficientemente profunda para que possa sentir um toque a finados nos meandros das minhas memórias, das discussões, das lágrimas, dos ódios contra os estalinistas que nos prendem, não, não sou um comunista, o que queres dizer com isso?, sinto a peçonha a acumular-se, sei que não sou comunista, talvez tenha comprado marxismo no Lidl, mas nada mais, nada, estou só a meter-me contigo, tem calma, acalma-te, relaxa.

E temos medo. E relaxamos. E acalmamos. Não somos comunistas. Nós, os que não se vestem como um comunista devia vestir-se. Porque ser comunista é ser okupa. E ser okupa é ser um precário. E nós não somos comunistas, Deus nos livre, nós não somos comunistas, é um epíteto morto, que se lê em livros antigos e empoeirados, não o usamos, sibilamo-lo, "aquele é comunista, já viste?", talvez sejam os nossos óculos e a nossa sintaxe, talvez seja a nossa gramática, as gramáticas da revolução não foram abaixo com o muro, ficaram apenas nos muros de dentro, aqueles que nos dão esta aura de peso, toneladas de tristeza porque carregamos o mundo e a sua possibilidade na retina.

Por que razão disse isto? Que não, não sou comunista, porque dizes isso? E porque me dizem isto, como se ser comunista fosse muito mau, mesmo mau, terrivelmente doentio, uma safadice imunda, esses gajos que conspiram para deitar abaixo um mundo tão bom, tão justo, onde há janelas em andares inóspitos, onde há nuvens que se abraçam aos dólares, e charutos pousados em secretárias de custo indeterminado, e terminais onde a racionalidade dos mercados devora vidas ao almoço e arrota sem memória.

E recorro aos armários onde guardo instantes para classificação póstuma. E vejo que há quem vote neles e culpe os operários. E os desempregados. E esses filhos da puta dos feiosos que não se riem da maneira correcta. É a ditadura do maneirismo, melhor dito Maneirismo, que o dia é de cerimónia engalanada, o ano é de celebração, o mundo ganhou, a realidade ganhou, a vontade e o poder ganharam, e eles votam ao mesmo tempo que assassinam o cheiro a suor, os cabelos empastados em faúlhas opressoras, as roupas e os modos-maus que nunca chegam, mesmo que se cheguem pertinho, pertinho, serão sempre insalubres. Eles votam e erguem o punho, fingindo combater a realidade e contando as moedas com que vendem as utopias às revistas de estilo, aos discos da moda, a tudo da moda, os jornais onde a sociedade morreu e a vontade colectiva é uma cabala de barbudos e cabeludos toxicodependentes. E eles votam. E ruborizam-se. E avermelham-se. E discutem penteados. E as cores das paredes onde chorarão a morte do mundo, às mãos das ideias. E fecharão os olhos à morte das ideias às mãos do mundo, que lhes passa ao comprido. Tudo num passe de dança, num fechar de olhos sem abrir que se compraz na satisfação de conhecer os dois lados da moeada, resolver esse enigma ancião, atirar uma moeda ao ar e apontar uma arma à sorte, agora decido eu, sua puta, que sempre me fodeste e agora mato-te sem honra ou glória, morre para aí sozinha, e pronto, agora podem votar nos comunistas e tecer um mundo em que se podem desejar transístores, em que as comidas processadas são filhas da Virgem Maria, em que as crianças esmagadas debaixo de engrenagens solitárias são filhas da Virgem Maria, porque agora já não há Marias Madalenas, eles podem votar em quem querem e podem ser pedantes à vontade, que esconderão essa dor fundamental atrás de silogismos enciclopédicos, anunciando a possibilidade de tudo, de querer comunistas no poder e saborear as delícias de tudo almejar, tudo querer, sim senhor, sim senhor professor, sim meu amor querido e desejado porque tens tanto poder e eu preciso de poder para não ser obrigada a sentar-me, numa noite solitária, a tecer interrogações desiludidas, de que serve? O que é isto tudo? Tantos livros e restaurantes, tantas conversas grandiloquentes e interjeições terapêuticas, tanta bajulação e tratamento faraónico, deu frutos, resultou e já não preciso de me preocupar, mas isto fica, esta inquietação fica e acordo de noite, afundado em suor, desesperada porque não sei de que serviu, continuo preso a correntes que não intuo, demoro-me em memórias esmaecidas e sinto-me morta. Sim, eles votam nos comunistas, desferem-lhes golpes porque jã não são operários, exigem-lhes que o sejam e que falem como meninos de boas famílias, exigem-lhes que vocalizem todas as sílabas, contestam imagens roucas e grotescas, o cheiro da fábrica não lhes convém, o cheiro da catinga também não, porque os gabinetes e os jantares e as discotecas e as livrarias e as esplanadas ondem se declaram tão revolucionários como Trotsky cheiram muito melhor, não cheiram a morte nem a opressão, as lágrimas de quem os serve podem ficar trancadas fora do mundo que os acomoda, que os embala no sono e lhes dá 1+1=2. Mas eles votam e conhecem. São informados. Até ao dia em que calam a revolta, porque não pode ser ali, é preciso acautelar o futuro, isto não vai lã com amor e uma cabana, nós somos reais, nós somos realistas, nós somos a praxis da pragmática, nós vemos o mundo e sabiamo-lo antes de Deus, antes de Allah, antes do Buda. Não era o momento, ali não, o senhor doutor professor não podia saber que eu choro a ouvir a Internacional, o professor senhor doutor não podia saber que eu cuspo no prato dos burgueses que nunca servi, mas sei que existem e comem criancinhas, eu que sou comunista nunca as comi, mesmo quando me demorei a escarnecer dos cabelos sebentos daquela porca nojenta que grita para outra porca nojenta, feias que são, só podem merecer o destino que as espera, um subúrbio interminável e labiríntico, nem Borges saberia o que fazer daquilo. Era altura de me calar, depois posso chorar, é preferível chorar de barriga cheia que ser íntegro de barriga vazia, é preferível deixar que a integridade seja uma indigente amarga e que se esqueça de si mesma. Eles votam e escarnecem, eles votam e esquecem. Acordam e, sentados à beira da cama, debitam um rol criativo de justificações. Eles são indústrias de justificações austeras, eles constroem-se como quinta coluna, até ao dia, até ao dia, quando isto tudo ruir, eu serei glorifcado, eu serei santificada, haverá hagiografias, haverá universidades com o meu nome, incluindo os meus quatro doutoramentos e os meus trinta e oito mestrados, placas de mármore versajando a minha epopeia de mártir, eu mártir, eu santo, eu santa, tudo isto para ter o reconhecimento das massas, as mesmas massas onde milhões de varejeiras com cabelo empastado, de tímpanos gastos e sonhos estilhaçados, me alçarão à imortalidade, chega-te para lá García Márquez, és um tinhoso, eu é que sou comunista, votei neles toda a vida.

Porque é que tive medo? É difícil explicar. É fácil senti-lo. Os homens são bichos sociais. Queremos viver numa história de amor, numa história de glória, num dealbar de bandeiras em nossa honra. A solidão obriga-nos a perceber a nossa fragilidade. Inventamos fantasmas para esconjurar o silêncio. E, por isso, tive medo. Tu também tens medo. Tu deixas que um medo petulante te destrua, e és uma carcaça vibrante. Eles não concordam contigo, por isso estão errados. Mas o mundo não está errado, apesar de não concordar contigo. Eles tomam realidade em comprimidos, ao passo que tu és toxicodependente. És realodependente. A realidade é como a heroína. É daí que emerge o teu ódio. Também votas e abjuras, como eles. Também és um Galileu arrependido. Também acordas, de noite, com um fragor contorcido no rosto, queres afogar-te na almofada, quando te vens nas noites dolentes em que as ideologias estão atrás das estrelas, nas naves espaciais comandadas pelos vultos que marcam os livros e o teu olhar. E é por isso que só se pode falar daquilo que te conforta. É por isso que tudo aquilo que se esconde nas tuas entrelinhas é censurado, proibido e queimado em efígie. A realidade não se selecciona, é como a heroína. E tu votaste neles, mas não gostas de quem se mascara de oprimido. Não gostas do desconforto que te causam, porque a impostura é uma pele que usas com conforto desditoso.

Pegas numa caçadeira e desatas aos tiros, até os matares a todos. Sonhas com os pormenores, com o sangue a brotar, com os miolos a poluir as certezas confortaveizinhas de todos os porcos e carneiros que estão prestes a saber que a lógica e a razão presidem, num trono inefável, aos destinos do mundo, e és tu o seu anjo vingador. Carregas a caçadeira e dás-lhes esse prazer, o prazer do sentido, o prazer de mostrar ao mundo que vivi para qualquer coisa, fui o móbil deste acto estouvado, desta assassina demente, mas servi para alguma coisa, não fui cúmplice de Chaplin, não causei o suicídio de Débord, embora seja uma pequena nota de rodapé nos borbotões da História.

E eu quero mudar. Quero escrever nos sulcos da carne. Quero arranhar a terra até lhe mostrar a minha dor. Vocês votam e choram de barriga cheia. E dizem que sim com um sorriso enquanto se fazem Dalilas.

22/12/2010

We be free in the land of freedom or we be dead



I'm Free - Soul Position

[Intro:]
(I'm free!)
Son you gotta just hit it hard
You gotta do it right baby
No bullshittin

[Chorus:]
(I'm free!) You free now, are you really?
How free, since when?
You free now, are you really?
How free, since when?

[Blueprint:]
Tryin to get a free mind, in these free times
But I only feel free when I freestyle
Any other time, money's on my mind
Can't be free when I'm a slave to free enterprise
Some of us don't get it, we think it's copacetic
Got some free love and ended UP in a FREE clinic
Some free medicine, a free prescription
Some people think bein free means bein unprotected
It ain't right to me, somebody lied to me
When they said that the best things in life are free
It don't seem to be that cool bein free
Cause man brings anything free to its knees
We cut down trees, 'til everything's extinct
Then build free-ways over where they used to be
It's like a free-for-all that keeps me amazed
In the land of free, home of the brave

[Chorus]

[Blueprint:]
Let freedom rain down on this whole nation
Full of freemasons and fiends freebasin
Friends freeloadin lookin for a free meal
Girls that got in the club free just to steal
Homeless people think they free, I think it's funny
Cause freedom is a joke when everything costs money
You can't even fuck for free, that's out of the question
Prostitution is the world's oldest profession
Independent women claimin free, could of fooled me
If that's true why you let dude buy you drinks?
It might seem free, cause you didn't pay
But dude who bought you that, he tryin to get laid
Freedom in America, is all about consumption
You ain't free unless you get out there and buy somethin
More spendin, more taxes
More money for our military actions

[Chorus]

(I'm free! ... I'm free!)

Those smiles we bore and lost



Beirut - Sunday Smile

All I want is the best for our lives my dear,
and you know my wishes are sincere.
Whats to say for the days I cannot bear
a Sunday smile you wore it for a while.
A Sunday mile we paused and sang.
A Sunday smile you wore it for a while.
A Sunday mile we paused and sang.
A Sunday smile and we felt true. (and)

We burnt to the ground
left for you to admire
with buildings inside church of white.
We burnt to the ground left a grave to admire.
And as we reach for the sky, reach the church of white.

A Sunday smile you wore it for a while.
A Sunday mile we paused and sang.
A Sunday smile you wore it for a while.
A Sunday mile we paused and sang.
A Sunday smile and we felt true. (and)