17/05/2013

Discos II

Portanto, se não damos conta, porque não prestamos atenção, porque elas, as nossas pessoas-disco, os nossos discos de vinil, nem sequer pretendem ser essenciais a um sorriso, talvez seja possível viver sem elas. E tem de ser possível, porque, tal como podemos viver sem ler Proust, sem ouvir um riff de Hendrix, sem ir a um cinema ver o 2001 ou o Lawrence da Arábia, também podemos viver sem estas pessoas, não é?

Talvez. Talvez não. Talvez a sua ausência seja umas das razões pelas quais nos sentimos ocos, muitas-demasiadas vezes, apesar de estar tudo em perfeita simetria harmónica-impenetrável-ardente. Mas não podemos dar-nos conta, porque não sabemos que o segredo de uma vida bem vivida está nesses pequenos incrementos, no som mais rico-mais quente-mais denso, e não nas grandes vitórias inefáveis e grandiosas, e não nas pessoas grandes, nas pessoas gigantes, nas pessoas que ocupam o tecido espácio-temporal até não caber mais nada, nas pessoas que julgamos serem os nossos pilares e, na verdade, a bem-dizer, vamos lá a ver, isto é, afinal... são pilares-ilusão. E é nos nossos discos de vinil, nessas pessoas imperceptíveis, nessas pessoas que perdemos como quem perde um brilho irrisório no olhar, que navegamos.

É, certamente, um cliché. Mas os clichés também têm uma história. E, parafraseando David Foster Wallace, os clichés são-no porque encerram verdades terríveis. E a primeira verdade terrível destes peculiares discos de vinil é a sua natureza finita e fugidia. E a segunda verdade terrível destes peculiares discos de vinil é a facilidade com que se ausentam, a facilidade com que nos vemos presos à vontade de buscá-los, persegui-los, porque sabemos que não desejamos possuí-los, nem tê-los, nem dominá-los. Desejamos que eles toquem por si e nos façam fechar os olhos, porque ficamos embevecidos quando se deixam pousar, por um instante esquecidos da sua ausência, esquecidos de serem finitos e fugidios. E são música porque existem e não porque tocam para nós ou por nós, não é? Terceiro cliché. Eu nunca quis um disco de vinil (dos redondos ou dos peculiares) que tocasse para mim.

E talvez seja essa a razão pela qual fenecem e são fugidios (os peculiares); porque, a partir do instante em que pretendemos domá-los, retê-los, torná-los propriedade privada, deixam de ter o som rico, quente, denso que os torna preciosos. Passam a ser lâminas afiadas e um punhal apontado a si mesmos (a nós, portanto). Quarto cliché. São indispensáveis enquanto puderem ser dispensáveis. Só tornam a nossa vida mais viva se puderem não torná-la mais viva. Só tornam a nossa vida mais preciosa se puderem evaporar-se e não estar ali, no último instante onde os vimos.

Sim, talvez seja isso que os torna frágeis. E talvez seja isso, também, que nos torna quebradiços; talvez seja essa a diferença entre agape e phileos. Mesmo que, a cada compasso, sintamos ter perdido um som irrepetível.

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