Afago o disco e sinto os sulcos que a agulha percorre, vibrando, para produzir sons. Fecho os olhos e deixo que a textura negra entre cá dentro. Faço de conta que o meu indicador é uma agulha. Abro os olhos e vejo o gira-discos, inerte. Pauso e penso em todos os discos que me esperam, e numa loja de discos que bem pode ser a fonoteca de Babel.
E penso numa pessoa que me põe a considerar a diferença entre ouvir um disco de vinil e um CD. Como todos os amantes do vinil, sinto o som mais quente, mais cheio, mais denso. Não creio, contudo, que os meus ouvidos sejam suficientemente sensíveis para perceber a diferença. Sei que, ao ouvir o som digital, penso ouvir algo mais frio e impessoal; e percebo que isso pode dever-se ao facto de ser uma tradução em bits da informação que, no vinil, é fisicamente inscrita na superfície do disco. Mas também sei que, salvo algumas excepções honrosas, o ouvido humano não consegue distinguir fundamentalmente entre uma gravação digital feita por um engenheiro competente e uma gravação analógica feita por um engenheiro igualmente competente.
Bem vistas as coisas, o CD é, provavelmente, mais conveniente que o disco de vinil. É mais pequeno, potencialmente eterno e, se a gravação tiver uma qualidade muito elevada, o som pode ser mais detalhado. O disco de vinil é mais frágil, mais pesado, maior e tem um número limitado de rotações (mesmo que, para efeitos práticos, esse número possa nunca vir a ser atingido, ele existe).
Mas não é isso que nos interessa, pois não? Volto a pensar na tal pessoa. E nas coisas que a vida nos ensina. E nas coisas que sentimos ao tocar numa capa, cumprir o ritual de tirar o disco do sleeve, colocá-lo no gira-discos e, com a gentileza de que formos capazes, colocar a agulha no sítio certo para que não se oiçam rasgos, silêncios ou marcas na superfície.
Para que é que precisamos disto, se a qualidade do som está na nossa cabeça e não na superioridade objectiva? Para que é que precisamos disto, se o CD chegava?
E verto a pergunta. Para que é que precisamos de algumas pessoas na nossa vida, se elas não são objectivamente necessárias à satisfação das nossas necessidades e, frequentemente, também não são necessárias à procura de sentido, à procura da felicidade, à procura de tudo aquilo que buscamos?
A resposta está num disco de vinil, penso por agora. Não precisamos de um disco de vinil para ouvir música. Nem sequer precisamos de um disco de vinil para apreciar música ou um detalhe mais ou menos subtil. Mas quem gosta genuinamente de coleccionar discos percebe aquilo que me passa pela cabeça.
Essa não é a questão. Nós fechamos os olhos e cheiramos as capas de discos velhos e novos; nós passamos horas a observar algumas das maiores obras de arte da história da música que ficaram na capa dos nossos LPs; nós tiramos o disco do sleeve com todo o cuidado porque é um ritual; nós pousamos o disco no slipmat como se fosse um sacramento; nós calibramos o braço do nosso gira-discos durante horas porque achamos que sim, isso fará diferença; nós gostamos de cada raspadela e vibração estranha da agulha. Nós não passamos por cima das canções; quando um disco começa, só tiramos a agulha para pousar o braço no suporte, mudar de lado e continuar.
É isso que torna o disco de vinil diferente. E é isso que torna o som mais quente, mais cheio, mais denso. Podia perfeitamente gravar um CD com ficheiros lossless, talvez MP3 com um bitrate elevado, e talvez não desse por nada. Mas não teria cumprido nenhum destes rituais. Não teria tido que montar o meu gira-discos e calibrá-lo; não teria o prazer de olhar para tudo o que uma capa nos dá.
Penso de novo em quem me fez cismar nisto. E penso que não saberia explicar-lhe isto de forma compreensível. Que, a bem dizer, há pessoas dispensáveis da nossa vida e, às vezes, num pestanejar, deixam de ser dispensáveis e passam a ser ausências. Como os discos de vinil, porque dão mais trabalho, porque não são estritamente necessárias, porque nem sequer se importam de estar ausentes e, por vezes, até promovem a sua ausência (com a nossa colaboração) - porque temos tanto em que pensar, e as aparelhagens, agora, deixam-nos passar por cima das canções de que não gostamos. Um pouco como a vida que levamos: já não temos espaço para isto, dá demasiado trabalho e, ainda por cima, nem sequer é estritamente necessário. O CD é mais pequeno, mais portátil, menos inconveniente; o MP3 nem sequer ocupa espaço físico e podemos guardar milhões de ficheiros nos nossos portáteis, nos nossos iPods, nos nossos smartphones. Se não prestarmos atenção e se não quisermos perder tempo, se não quisermos passar horas a calibrar braços e a substituir agulhas, se não quisermos passar horas a afagar a superfície de discos e a sentir o cheiro a tinta e papel das capas, não precisamos de fazê-lo. Não temos que fazê-lo. E continuamos a poder ouvir música; continuamos a poder apreciá-la. Será, apenas, menos rica. Como, muitas vezes, não prestamos atenção, nem sequer damos conta.
Mas são essas pessoas, pessoas como aquela que me fez escrever isto, que tornam as nossas vidas mais quentes, mais cheias e mais densas. São essas pessoas que nos fazem tropeçar em tesouros (são elas os tesouros). Essas pessoas são como as capas dos discos de vinil; são como os sulcos que sentimos nos discos antes de, com cuidado, colocarmos a agulha na sua superfície; e deixamos que o seu som, rico e quente, nos sirva de anjo da guarda.
Se a minha vida fosse música, essas pessoas seriam os meus discos de vinil.
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