20/11/2010

Crónicas de Tempos e Rios




(parece que uma memória se apresta a visitar-me. e fui à procura. encontrei algo. fraco de qualidade literária, mas cândido, meigo, de uma doçura que já não descubro cá dentro. leio isto e sorrio, três anos depois)

Crónicas de Tempos e Rios, parte I

Algures no sul de um continente esquecido, nasce um rio. É um rio modesto, pequeno. Não troveja como o Amazonas ou o Mississipi, não é imperial como o Nilo ou o Tibre, não é sagrado como o Ganges ou o Rio das Pérolas, nem brilha como o Sena ou o Tejo. O mundo é feito, muitas vezes, de coisas pequenas, que dão mais sentido à vida que as grandes coisas, os tesouros de valor incalculável, os livros de beleza impossível.
É modesto, não gosta de atrair atenções; contorna rochas com discrição e raramente reclama. Não é um rio de cascatas. Corre com firmeza, mas é dócil e simples.

Ele não gosta que o descubramos. Prefere ficar num recanto tranquilo da tua e da minha infância, quando todos os rios eram rios-de-lenda e todos os desertos eram desertos-de-maravilha. Mas os rios-de-lenda são demasiado concorridos; já se lhes descobriram os segredos todos. E os desertos só são maravilhosos até nos explicarem que aquela imensidão é só um monte de grãos de areia que preferiu não se mexer. E todos os rios escondem segredos, não é preciso ser rio-de-lenda. Este, em particular, esconde o segredo da sua própria existência, que constitui o fundamento de muitos outros segredos.

É que ele é o único rio filho de um deserto, filho da história de amor ocorrida entre a Vida e um deserto, único entre todos os cursos de água. Brota de uma planície arenosa, sem história e sem memória (já entenderás porque não tem história (que precisa do Tempo) e memória (que raramente por ali passa). Quem testemunha o seu nascimento não fica particularmente impressionado. É um nascimento sem inquietude. Talvez a forma como nascemos determine, em parte, o nosso ser. Rios que nascem impetuosos, do alto de um cume montanhoso, tornam-se torrentes aventurosas; outros, mais lânguidos, revelam a sua calmaria nas paragens que escolhem para espraiar as suas águas.

Ele nasce de um deserto, e não conhece outro, não sabe que os desertos têm limites e podem ser atravessados. Porque nasce, corre e desagua no mesmo solo arenoso; na verdade, posso dizer-te que é o único rio, no mundo inteiro, que não conhece o mar. Há rios que nunca chegam a vê-lo, mas conhecem-no, porque falam com rios maiores e mais viajados. Que é azul e imenso; que domina a vontade dos homens sem que eles se apercebem, porque não podem erguer-lhe barreiras. Todos os rios suspiram por esse poder; nenhum deles gosta de sufocar nas barragens que os homens erguem, para sua glória e supremacia sobre a natureza.

Mas o nosso rio preocupa-se pouco com Oceanos, com o poder e a glória que tantos procuram; ele nasce, corre e desagua na areia, onde as ilusões e o brilho do ouro têm menos valor que a paciência. Avistou, certa vez, um homem; mas este, exausto pela travessia do deserto, sedento, caíu morto nas suas margens, antes de poder explicar ao rio todas as coisas que o deserto esconde. E o rio chorou, porque nunca havia visto a morte tão de perto. Os rios choram, às vezes. Quando um lago morre, ou quando uma árvore é levada pelo deserto. O som de um rio a chorar é morno, como uma guitarra a suspirar de saudades; mas um rio é e não é, porque corre e nunca pára. Portanto, o seu choro desvanece-se com facilidade, e só resta a corrente.

Se lhe perguntasses: “ficas triste, por morrer no deserto, sem ver o mar ou os homens, com os seus palácios, os seus amores, as suas delicadezas efémeras”?, ele responder-te-ia “não sei; eu corro e desmaio no deserto; sou um rio, não te esqueças, e os rios não não mudam de ideias”. Mas ele é menos simples do que aparenta. Tem histórias para contar. Porque a sua vida se estica dentro do deserto, a areia é o seu universo. A sua Via Láctea. E, assim, as coisas que não podem ser vistas, que só os poetas e os músicos podem imaginar, vogam por ali, no limiar do deserto, à procura de repouso. Se este rio, este curso de água modesto pudesse correr nos ouvidos de um escritor, encher-se-iam dilúvios de páginas com lendas que o continente esquecido engoliu, para aclarar a mente dos homens. Não podemos viver rodeados de lendas, se queremos fazer leis. Os deuses viveram connosco, até querermos medir a electricidade dos seus poderes e a omnipotência da sua vontade. E foi nesse momento, no instante em que quisémos medir e legislar, que os deuses se desfizeram: transformaram-se em nuvens e flores, na ideia de beleza e na ideia de liberdade, no desejo de sonhar e de fazer amor. Sim, os deuses ainda velam por nós, apesar de já não lhes chamamos deuses, para não enlouquecermos. Mas há outras coisas. O mundo não é feito apenas de divindades. E o rio sabe-o. Já deve ter pensado que, ao sabê-lo, condena-se a morrer no deserto. Mas, se o deserto é um universo, o rio tem, perante ele, a mesma sensação de grandeza que tu e eu temos, ao escutar o céu estrelado. Não sabias que podes escutar o céu, aposto. Mas essa é outra história, a contar num outro deserto, talvez noutra vida…

Quando penso no rio, acredito que ele está destinado a morrer só, para que os segredos da sua corrente, da sua água, não entrem no Oceano e penetrem o Universo. Já não conseguimos acreditar em magia; é melhor para nós, se desejamos riqueza com tanto ardor.

O rio sabe que o Tempo e a Memória também precisam de descanso. Todos os átomos do universo têm tempo e memória. Mas, algures no ponto que contém todos os outros pontos do universo – e que melhor ponto será esse, se não um rio que nasce, corre e desagua onde nada consegue viver? -, todas as recordações de todos os homens de todos os tempos se unem e formam uma mulher. E isso só é possível porque, também nesse ponto, nesse ponto que nem o sonho de um geómetra poderia localizar, todos os tempos e todas as mudanças da existência se unem e transformam num homem. Dir-te-ia que é demasiado típico, demasiado óbvio, demasiado cliché… Mas as histórias de encantar também precisam de ser familiares, de soar como uma melodia antiga, que já ouvimos, algures.
Tempo e Memória existem um pelo outro e um para o outro. Memória não existiria sem Tempo; Tempo não faria sentido sem Memória. Gémeos (embora não siameses), falam em silêncio, cada um na sua margem do rio. Trocam olhares cúmplices, porque só eles reconhecem a sua presença; e sabem, porque nem eles podem vergar o universo à sua vontade (mesmo quando é um deserto arenoso e vazio), que têm de estar separados.

Quando trocam olhares, o Mundo mantém o seu sentido ancestral: os seres humanos apaixonam-se e desaparecem, as florestas ouvem, em segredo, o riso dos rios que procuram o Oceano, as árvores levam a esperança aos caçadores do princípio da Realidade.

Eles sabem, o rio sabe, que, se algum deles cedesse ao desejo de atravessar o fio de água – porque têm uma paixão secreta -, Memória enlouqueceria e Tempo desapareceria.
O rio corre sem pressas, com velocidade suficiente para não desfalecer. Tempo e Memória semicerram o olhar, tentando imaginar outra terra e outro rio. Porque eles, que nos protegem da loucura e do esquecimento, são tão poderosos que nos parecem fracos. Tempo é, dizemos nós, uma invenção humana para nos enjaular. E ele diz, com uma voz sem pressa e sem vagar, algures fora do curso da História: “os humanos dizem inventar aquilo que não podem controlar; assim, iludem-se com a possibilidade de me controlar. Inventam relógios e julgam trancar-me dentro dos ponteiros.”. Memória, que está inscrita nos livros do Destino e, portanto, é feita de letras, notas musicais e cores desvanecidas, assente, com a sabedoria de quem compreende ser impossível prever o futuro a partir de si mesma. Quando Tempo se levanta, rumo ao deserto, Memória sente os joelhos enfraquecer.

E Tempo chora. Chora pelo rio que tornará a morrer, um sem-número de vezes, até poder voltar a acariciar-lhe a água. Chora porque acumulará todas as tristezas e todas as alegrias que o Mundo produz. Chora porque vê Memória a fraquejar; sabe que ela precisa de uma força que perde, quanto mais distante ele estiver. Caem-lhe lágrimas porque é, realmente, uma invenção dos Homens, e precisa de viver na sua ilusão; e sabe que Memória é mais frágil.

Memória não consegue chorar como Tempo. Olha o rio e repara no seu reflexo; mas vê todos os reflexos que já vira e compreende que mudou de forma, mas é um retalho de todas as recordações já sucedidas e, por isso, a sua beleza é a de nunca ser fiel. Memória tenta chorar, para que Tempo regresse, mas ele não o fará. Ela fica só, à beira do rio. Talvez essa solidão, Memória sem Tempo, sejam as lágrimas de Memória, na saudade do Tempo. Ela sabe que, quando ele regressar, já nada restará, tudo será docemente enevoado. Porque o romance do Tempo e da Memória é um conto encantado que nunca termina; é uma fábula que te ofereço, na noite em que um rio abensonhado retorna ao local onde nasce, na noite em que Tempo e Memória, por dois segundos apenas, enganam o Mundo e trocam um olhar eterno. E é nesse olhar que ficam, porque o Tempo também precisa da eternidade para sonhar. Que o amor toca a todos, mesmo que a distância seja um rio, um mar ou apenas a tristeza de partir. Tempo e Memória, em permanente dança, pontos minúsculos na beira-rio de um continente esquecido, olham para aquilo que tentam esquecer.

O rio corre, modesto e gentil. “Se eles, lá longe, soubessem”, ri-se para dentro. “Se eles, lá longe, soubessem que Tempo e Memória não podem ver-se separados, mas vivem em permanente separação…”, continua, “talvez as canções de amor fossem menos magoadas; talvez todos fossem menos saudosos e trágicos, que a paixão dos homens dura pouco, menos ainda que a vida de um rio no deserto”, a voz dele adquire vivacidade, a velocidade da sua corrente aumenta, “e todas as guerras e distâncias e tristezas, todas as saudades e palavras duras e lágrimas, todos os sonhos e coisas impossíveis e tesouros doridos, talvez todas essas coisas desaparecessem, como névoa num dia em que duas pessoas se separam, cientes de que nunca mais se verão”. E ele continua a correr, enquanto pensa, com ternura, em Tempo que chora, e Memória que fraqueja e recorda.

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