30/12/2010
A ponte que não era ponte
Portanto, talvez este retrocesso signifique qualquer coisa. Talvez resolva os nós górdios. E talvez cauterize os borbotões de fúria que crepitam debaixo da pele. A raiva, essa, evanescente, desapareceu. A fúria está aqui, estrepita, sedenta de esperneio. Mas não te dou a autorização que almejas, pelo que podes sentar-te, reler as estrelas e aguardar melhores dias. Garanto-te que virão.
Pode não significar nada. Reconhecer a miragem não lhe retira atractividade. Continuamos a esmagar-nos mutuamente por miragens todos os dias repetidas na televisão, miragens que sabemos serem-no, ilusões prestimosas que passam por shot de irrealidade, ou cigarro de ópio, ou riscos de ouro branco. Mas é duro.
Soam os trovões e continuo a cismar. No que não foi e podia ter sido. No que foi e podia não ter sido. No que não foi e não podia ter sido. Dizem-me que devo tirar ilações. Concluir, extrair silogismos.
Mas para quê? Porque é que os seres humanos são avessos a questões abertas? Why the fuck do we require closure to get by? Não, não preciso de tirar ilações; preciso, somente, de pensar. De pousar a mente e aquietá-la, para que as luzes não a perturbem, enquanto encadeia uma e outra ideia. Para que narre uma versão, a sua versão, não precisa de ser a melhor, a mais polida, a mais crua ou a mais convincente, apenas a versão de si-mesma, a proximidade menos estranha, para que os caminhos sejam menos sinuosos, para que as vontades sejam menos indomáveis, para que a solidão pareça cada vez menos venenosa.
E, enquanto recolho os despojos da guerra, desse atordoado conflito que trespassou o meu corpo-país, tento recobrar, remendar, remediar, recurar, tudo o que julgávamos ter ficado, e não ficou.
É que, hoje, fiquei com outra impressão. De que ambos estávamos iludidos. Pensávamos que o nosso segredo era a cumplicidade. Mas já não temos segredos, porque a cumplicidade se esvaiu. E ficámos presos a uma recordação.
Volto a ficar só. Fiquei preso. E "é normal". "É normal" que assim seja. E pegamos nas pernas e pagamos a um batalhão de psiquiatras que nos desnormaliza, renormaliza e anormaliza.
Penso que nunca mais sairei desta prisão. E penso mal. E torno a pensar bem - noites escuras há muitas, tudo depende dos nossos olhos e da sua preparação. Não somos lemures, bem-entendido, mas somos primatas complexos, podemos preparar-nos.
"Eu achava que isto ia ser para sempre", diz ele. És estúpido, é o que é. Que isso do "para sempre" foi escavacado pelo Einstein, depois pela menina do café onde ias tomar um bagaço surripiado a vontades alheias e, finalmente, pelo Programa de Estabilidade e Crescimento. O "para sempre" não é teu, nem poderia sê-lo. Que a solidão é mais difícil de enfrentar quando é só nossa; terrível destino para gente que se considera boa, boazinha, tão-tão boazinha que se molha ao oferecer comida quente, só o emprego é que não, nãonãonão, nem ideias, nem pensa-por-ti, muito menos livros, bombas nem pensar, porque fora da caixa é para os bons, os lavadinhos. E tergiverso.
Voltando à terra e ao tom diarístico, agora que os bisbilhoteiros, acossados pela dose cavalar de texto críptico e incompreensível, debandaram. Descobri que era uma ilusão. A pior das ilusões, a de uma cumplicidade que existiu, de tão palpável, de tão crível que era, e, como síncope do coração do mundo, esfumou-se.
Porque é que o ser humano consegue travestir a sua vida em farsa e, mesmo assim, erguer o nariz, em tom desafiapedante? E porque é que enviei emails em borbotão, tentando reerguer uma ponte desfeita onde já não há solo para plantar nem uma árvore?
Uma tentativa, e outra. Talvez não possa reerguer esta ponte. Terei chegado tarde demais, depois de me embrenhar na floresta do remorso. Certo é que já não há solo. Nem mesmo margem. Nem outro país com o qual construir algo de novo.
Desapareceu, simplesmente.
27/12/2010
Noite Escura
(algures na primeira década do séc. XXI)
Quando nos perdemos,
nesta noite escura,
os nossos corações
eram um choro
que se despedia.
E éramos, uma vez mais,
duas notas dissonantes
dois astros discordantes.
Quando nos recolhemos,
nesta noite escura,
os nossos olhos
já não eram um silêncio
que se assobia.
E escondemos as mágoas,
porque as despedidas
sabem velar a saudade.
Quando nos desconhecemos,
nesta noite escura,
os nossos corpos
eram rios
que desdenhavam a alegria.
E calámo-nos,
porque o nosso segredo
é a cumplicidade.
Quando esquecemos,
nesta noite escura,
os nossos medos
já só eram espíritos
ansiando por magia.
E separámo-nos,
ativemo-nos um momento.
Afluindo ao mesmo futuro,
confessávamos, entredentes.
Que, nesta noite escura,
tu e eu somos seixos
molhados pelas lágrimas
das estrelas cadentes.
26/12/2010
Os Quinhenteuristas ou Mandar uma Geração Inteira à Merda
Mais uma recuperação do Zen e a Arte de Divagar
Os Quinhenteuristas ou Mandar uma Geração Inteira à Merda
Quarta-feira, 13 de Janeiro de 2010
Começa aqui. Li isto e fiquei possesso.
Depois, pensei em fazer um comentário a este post, mas alongou-se, tal era a minha fúria, e prefiro deixar aqui, a título da posteridade e das gerações futuras que me encarregarei de aviltar, se me tornar num velho jarreta e insuportável.
Quer então dizer que as gerações precedentes podem dar a desculpa do contexto ("eles é que nos roubam"; "a economia é que está mal"; "este país não funciona"), mas a geração hi5 não? A culpa de tudo o que acontece à geração hi5 é da geração hi5?
Esta conversa faz-me lembrar certos passageiros de transportes públicos. "Esta juventude está perdida, não têm valores, não têm objectivos". Pois é. Mas, que eu saiba, esta juventude surgiu por causa de quem agora diz que está perdida. Que ainda não somos andróides emanados de casulos assexuados, acho eu.
E, se há alterações climáticas, se há desequilíbrios estruturais na economia, se há desaceleração demográfica, se os valores se perdem, não é por responsabilidade da juventude 16-25. Contra mim falo, que andei anos a tentar dizer aos meus colegas de faculdade que era preciso dialogar, se necessário lutar contra as injustiças criadas por estruturas sociais erigidas pelas gerações precedentes, que se queixam da falta de valores da juventude, mas que não são capazes de olhar para o espelho e perceber que a disfunção social/institucional decorre da sua própria inércia, incompetência e cobardia. Fiz parte de associações, nem sempre com sucesso, mas sempre com disponibilidade. E nem todos os jovens estão perdidos ou desinteressados. Estão, sim, desinteressados num quadro institucional que premeia a incompetência, a mediocridade, as cunhas (nas suas várias degenerescências), a antiguidade (que é um posto arcano) e a arrogância autoritária das mentalidades que, caso fosse possível, encerraria no Museu de Arte Antiga.
É de pessoas reais, palpáveis, tangíveis, de que vocês falam. Pessoas que nasceram depois da dívida portuguesa ao FMI, pessoas que nasceram depois ou durante o cavaquismo, pessoas que nasceram depois da adesão de Portugal à CE/CEE/UE, pessoas que nasceram depois da queda do Muro, pessoas que nasceram depois do VOSSO consenso de Washington, pessoas que nasceram depois do VOSSO devorismo, pessoas que vivem imersas num caos pessoas que são obrigadas a ficar em casa dos pais porque não conseguem subsistir sozinhas - acho inacreditável que considerem todos os jovens 16-25 preguiçosos ao ponto de quererem limitar a sua própria autonomia -, pessoas que podem não ter referenciais normativos aceitáveis para vocês, mas que tentam construir algo para si mesmas. Queria ver-vos sujeitarem-se aos callcenters, a distribuir flyers à chuva e aos falsos recibos verdes. Falam todos do alto da vossa sapiência, atribuindo responsabilidade total aos 16-25 pela sua situação e destino, mas divorciam-se das vossas responsabilidades.
Acho incrível que insistam em comparar a minha geração, os "millenials", a "Y", a hi5, a facebook, a 16-25 (já estou no último ano de pertença, vá lá...), à geração rasca e às gerações precedentes. Que eu saiba, a geração rasca não pagou as propinas que eu tive que pagar com o meu trabalho. E sabem o que é pior? É que eu trabalhei e, mesmo assim, fui obrigado a ficar em casa dos meus pais, porque, mesmo trabalhando, não podia ter uma casa e pagar os meus estudos. Era uma ou outra. Eu e os meus colegas, que também não puderam ficar em casa a coçar a micose, enquanto o Estado lhes dava bolsas de investigação, mestrado e doutoramento, para ficarem quase uma década a fazer ponta de corno - enquanto nós, os 16-25, recebemos a mesma bolsa que vocês, mas sem ajustes à inflação ou ao custo de vida, para nos esfalfarmos a ser escravos da vontade dos baby-boomers e dos "rascas" que lhes herdaram os tiques autoritários. E temos medo. Temos medo porque NÃO queremos voltar para casa dos pais. Porque queremos a nossa independência e não queremos copiar as frases dos outros, ao contrário do que é dito no post.
Também não pudemos beneficiar das reformas estruturais da administração pública, que deram emprego a muitos membros da dita "geração rasca".
Já que fiz disto um manifesto mais longo que o post original, volto a frisar o mesmo ponto: vocês insistem na nossa responsabilidade total perante a nossa situação, mas referem-se sempre aos "eles", à vossa situação como efeito directo e insofismável de uma conspiração global contra os vossos interesses, os vossos sonhos e desejos.
É sempre fácil dizer que a situação dos outros é responsabilidade unica e exclusivamente sua, ao passo que a nossa é atribuível a outrém, a um ente conspirador e malévolo. Porque "nós" temos valores, temos projectos, temos vontades, temos vidas e temos legitimidade para exigir. Vocês, os putos, os jovens, os precários, os preguiçosos, os indigentes mentais, os 16-25, os facebook/hi5 freaks, queixam-se de quê? Vocês têm tudo, têm Internet, têm iPhone, têm Playstations, cinema 3d, preservativos com sei lá quantos sabores, viagens low-cost para Ibiza, Copenhaga e Paris; estão a queixar-se do quê? Vocês só querem é ronha, ficar em casa com a cama lavada e comida da mamã na mesa, com os vossos canudos e os vossos mestrados, são todos blasés mas nem sabem abrir uma conta num banco.
É isto que se pensa? É mesmo?
Porque eu, que trabalho num Centro que inclui um Gabinete de Inserção Profissional - e estou a perder minutos preciosos de trabalho para escrever isto em resposta a um post que desqualifica todas as instâncias de apoio - não vejo isso. Não vejo jovens 16-25 despreocupados. Não vejo jovens 16-25 sem valores. Vejo olhos envidraçados de vergonha. Vejo tristeza. Vejo miúdos e miúdas esmagados pelo desemprego e pela manutenção do limbo, do não sair nunca da casa dos pais, cujo carinho não basta.
Falta de objectivos? Falta de coragem? Acham que é falta de coragem ir trabalhar para um callcenter? Já lá estiveram? Sabem o que é? Acham que é ter falta de objectivos querer um trabalho durante mais que a merda de um período de 6 meses? Também queremos ter famílias, emprego certo e falar de barriga cheia como vocês. Também queremos ter o vosso ennui burguês. Mas não podemos.
Mas nunca aceitarei que chamem, à minha geração, a "geração perdida", a "geração quinhenteurista" ou a geração "do desinteresse, da falta de valores, de coragem e de objectivos". Querem ter pena, querem criticar-nos, pois critiquem com quantas balas tiverem. Eu faço parte da geração 16-25 e recuso-me a aceitar estas críticas estúpidas de quem não tem pejo em dizer que, se alguma vez teve dificuldade na vida, foi por culpa "deles" e que tem muito bons valores, objectivos, projectos e o raio que parta.
Como medir a solidão
Também recuperado do Zen e a Arte de Divagar
"(...)Sim, eu quero saber". "O quê? O que queres saber?". "Qual é a medida da solidão, como é que posso medi-la, quantificá-la e torná-la estanque, para que não volte a ameaçar-me". "A medida da solidão? Como se a solidão pudesse ser medida. É uma impressão, aludes-lhe indirectamente, nunca a vês, não a cheiras, não a saboreias nem lhe defines o contorno. É que, para ser possível medi-la, seria necessário desmontá-la. E não podes descobrir o que é estar só, contrariar as tuas pulsões, o teu anti-eremitismo, desvendando a "medida". "Não. Isso é uma mistificação. Posso medi-la; se posso defini-la, também posso estabelecer a quantidade ideal". "Não, não podes. A não ser que estejas apto a incorporar a solidão, a torná-la o teu destino, ela iludir-te-á. É melhor assim. Não conseguimos viver sós. Está cá dentro, é uma urgência, como beber água, combatê-la, esventrá-la até que não nos ameace mais". "Vou medi-la. Vou torná-la tangível e compreendê-la. A medida da minha solidão é a quantidade de palavras que não digo, todos os dias. É o conjunto de silêncios indecifráveis que deixo em casa, e que me apanham desprevenido, em noites lentas. É o sentir-me surdo e esmagado". "Pois. Mas, a não ser que existas em dois universos, precisas de escolher". "O quê?". "Deixo essa descoberta para ti. É tarde, vou voltar para o armário onde tentaste trancar-me".
A realidade é como a heroína
Recuperado do Zen e a Arte de Divagar
"Então, comunista, como estás?". "Acho que acreditar em [inserir ideal utópico e secundário para as prioridades da intelectualidade urbana] demonstra a existência de uma esquerda festivaleira". "Sim, eu voto neles. Já agora, viste que horror é aquele cabelo seboso, aquela camisa barata, aquele perfume malcheiroso?".
Já não se pode afirmar que o mercado não é infalível. Que o sistema financeiro é composto por pessoas e algoritmos nos quais não se deve depositar confiança total. Também não podemos dizer que a igualdade é um princípio ético primaz. Não nos podemos dar ao luxo de acreditar na redistribuição da riqueza, na existência de coisas tão soezes como o ordenado mínimo, o subsídio de desemprego ou um regime fiscal progressivo. Não. A água também pode ser mercadorizada e privatizada. A educação e a saúde constituem sectores não-estratégicos. A energia? Que se privatize, o mercado manda, mesmo que passe os dias no psiquiatra, à espera de orientação. O ar? A terra? Não, não podemos afirmá-lo, dizê-lo seria uma radicalidade, relevá-lo seria provocar os poderes opacos, as eminências pardas sabedoras da incerteza.
Abanamos a cabeça e sonegamos, às evidências, a sua condição transformadora. Preferimos concentrar-nos em que nos está próximo. Em quem nos acompanha neste combate. Preferimos balear os nossos irmãos. Preferimos violar as nossas irmãs. Com o nosso silêncio, cavamos um buraco negro. Criamos a nossa própria extinção.
Chamam-me comunista, ainda que não conteste a propriedade privada. Chamam-me comunista porque consideram tal epíteto uma provocação suave, não desabrida, uma palavrinha torpe e simpática, que me caracteriza, empacota e define. Para que possam estabilizar-nos. Para que sejamos menos ameaçadores. É por isso que somos zapatistas. Que somos comunas, esquerdalhos e palestinianos. Fixados, não podemos feri-los. Somos animais no jardim zoológico: não conseguimos queixar-nos, porque não falamos as suas línguas, os seus dialectos pitagóricos. Deixamos de estar certos. Pensamos que devemos quedar-nos em silêncio, dúvidas ancestrais que nos pressionam as têmporas, será isso preferível a deixar-me enredar neste novelo de certezas?, talvez seja, talvez prefira ter medo e contradizê-lo, não, não sou um comunista, como podes dizê-lo?, no íntimo, é uma vergonha, talvez não no íntimo, mas, em todo o caso, pelo menos, na hipoderme, suficientemente profunda para que possa sentir um toque a finados nos meandros das minhas memórias, das discussões, das lágrimas, dos ódios contra os estalinistas que nos prendem, não, não sou um comunista, o que queres dizer com isso?, sinto a peçonha a acumular-se, sei que não sou comunista, talvez tenha comprado marxismo no Lidl, mas nada mais, nada, estou só a meter-me contigo, tem calma, acalma-te, relaxa.
E temos medo. E relaxamos. E acalmamos. Não somos comunistas. Nós, os que não se vestem como um comunista devia vestir-se. Porque ser comunista é ser okupa. E ser okupa é ser um precário. E nós não somos comunistas, Deus nos livre, nós não somos comunistas, é um epíteto morto, que se lê em livros antigos e empoeirados, não o usamos, sibilamo-lo, "aquele é comunista, já viste?", talvez sejam os nossos óculos e a nossa sintaxe, talvez seja a nossa gramática, as gramáticas da revolução não foram abaixo com o muro, ficaram apenas nos muros de dentro, aqueles que nos dão esta aura de peso, toneladas de tristeza porque carregamos o mundo e a sua possibilidade na retina.
Por que razão disse isto? Que não, não sou comunista, porque dizes isso? E porque me dizem isto, como se ser comunista fosse muito mau, mesmo mau, terrivelmente doentio, uma safadice imunda, esses gajos que conspiram para deitar abaixo um mundo tão bom, tão justo, onde há janelas em andares inóspitos, onde há nuvens que se abraçam aos dólares, e charutos pousados em secretárias de custo indeterminado, e terminais onde a racionalidade dos mercados devora vidas ao almoço e arrota sem memória.
E recorro aos armários onde guardo instantes para classificação póstuma. E vejo que há quem vote neles e culpe os operários. E os desempregados. E esses filhos da puta dos feiosos que não se riem da maneira correcta. É a ditadura do maneirismo, melhor dito Maneirismo, que o dia é de cerimónia engalanada, o ano é de celebração, o mundo ganhou, a realidade ganhou, a vontade e o poder ganharam, e eles votam ao mesmo tempo que assassinam o cheiro a suor, os cabelos empastados em faúlhas opressoras, as roupas e os modos-maus que nunca chegam, mesmo que se cheguem pertinho, pertinho, serão sempre insalubres. Eles votam e erguem o punho, fingindo combater a realidade e contando as moedas com que vendem as utopias às revistas de estilo, aos discos da moda, a tudo da moda, os jornais onde a sociedade morreu e a vontade colectiva é uma cabala de barbudos e cabeludos toxicodependentes. E eles votam. E ruborizam-se. E avermelham-se. E discutem penteados. E as cores das paredes onde chorarão a morte do mundo, às mãos das ideias. E fecharão os olhos à morte das ideias às mãos do mundo, que lhes passa ao comprido. Tudo num passe de dança, num fechar de olhos sem abrir que se compraz na satisfação de conhecer os dois lados da moeada, resolver esse enigma ancião, atirar uma moeda ao ar e apontar uma arma à sorte, agora decido eu, sua puta, que sempre me fodeste e agora mato-te sem honra ou glória, morre para aí sozinha, e pronto, agora podem votar nos comunistas e tecer um mundo em que se podem desejar transístores, em que as comidas processadas são filhas da Virgem Maria, em que as crianças esmagadas debaixo de engrenagens solitárias são filhas da Virgem Maria, porque agora já não há Marias Madalenas, eles podem votar em quem querem e podem ser pedantes à vontade, que esconderão essa dor fundamental atrás de silogismos enciclopédicos, anunciando a possibilidade de tudo, de querer comunistas no poder e saborear as delícias de tudo almejar, tudo querer, sim senhor, sim senhor professor, sim meu amor querido e desejado porque tens tanto poder e eu preciso de poder para não ser obrigada a sentar-me, numa noite solitária, a tecer interrogações desiludidas, de que serve? O que é isto tudo? Tantos livros e restaurantes, tantas conversas grandiloquentes e interjeições terapêuticas, tanta bajulação e tratamento faraónico, deu frutos, resultou e já não preciso de me preocupar, mas isto fica, esta inquietação fica e acordo de noite, afundado em suor, desesperada porque não sei de que serviu, continuo preso a correntes que não intuo, demoro-me em memórias esmaecidas e sinto-me morta. Sim, eles votam nos comunistas, desferem-lhes golpes porque jã não são operários, exigem-lhes que o sejam e que falem como meninos de boas famílias, exigem-lhes que vocalizem todas as sílabas, contestam imagens roucas e grotescas, o cheiro da fábrica não lhes convém, o cheiro da catinga também não, porque os gabinetes e os jantares e as discotecas e as livrarias e as esplanadas ondem se declaram tão revolucionários como Trotsky cheiram muito melhor, não cheiram a morte nem a opressão, as lágrimas de quem os serve podem ficar trancadas fora do mundo que os acomoda, que os embala no sono e lhes dá 1+1=2. Mas eles votam e conhecem. São informados. Até ao dia em que calam a revolta, porque não pode ser ali, é preciso acautelar o futuro, isto não vai lã com amor e uma cabana, nós somos reais, nós somos realistas, nós somos a praxis da pragmática, nós vemos o mundo e sabiamo-lo antes de Deus, antes de Allah, antes do Buda. Não era o momento, ali não, o senhor doutor professor não podia saber que eu choro a ouvir a Internacional, o professor senhor doutor não podia saber que eu cuspo no prato dos burgueses que nunca servi, mas sei que existem e comem criancinhas, eu que sou comunista nunca as comi, mesmo quando me demorei a escarnecer dos cabelos sebentos daquela porca nojenta que grita para outra porca nojenta, feias que são, só podem merecer o destino que as espera, um subúrbio interminável e labiríntico, nem Borges saberia o que fazer daquilo. Era altura de me calar, depois posso chorar, é preferível chorar de barriga cheia que ser íntegro de barriga vazia, é preferível deixar que a integridade seja uma indigente amarga e que se esqueça de si mesma. Eles votam e escarnecem, eles votam e esquecem. Acordam e, sentados à beira da cama, debitam um rol criativo de justificações. Eles são indústrias de justificações austeras, eles constroem-se como quinta coluna, até ao dia, até ao dia, quando isto tudo ruir, eu serei glorifcado, eu serei santificada, haverá hagiografias, haverá universidades com o meu nome, incluindo os meus quatro doutoramentos e os meus trinta e oito mestrados, placas de mármore versajando a minha epopeia de mártir, eu mártir, eu santo, eu santa, tudo isto para ter o reconhecimento das massas, as mesmas massas onde milhões de varejeiras com cabelo empastado, de tímpanos gastos e sonhos estilhaçados, me alçarão à imortalidade, chega-te para lá García Márquez, és um tinhoso, eu é que sou comunista, votei neles toda a vida.
Porque é que tive medo? É difícil explicar. É fácil senti-lo. Os homens são bichos sociais. Queremos viver numa história de amor, numa história de glória, num dealbar de bandeiras em nossa honra. A solidão obriga-nos a perceber a nossa fragilidade. Inventamos fantasmas para esconjurar o silêncio. E, por isso, tive medo. Tu também tens medo. Tu deixas que um medo petulante te destrua, e és uma carcaça vibrante. Eles não concordam contigo, por isso estão errados. Mas o mundo não está errado, apesar de não concordar contigo. Eles tomam realidade em comprimidos, ao passo que tu és toxicodependente. És realodependente. A realidade é como a heroína. É daí que emerge o teu ódio. Também votas e abjuras, como eles. Também és um Galileu arrependido. Também acordas, de noite, com um fragor contorcido no rosto, queres afogar-te na almofada, quando te vens nas noites dolentes em que as ideologias estão atrás das estrelas, nas naves espaciais comandadas pelos vultos que marcam os livros e o teu olhar. E é por isso que só se pode falar daquilo que te conforta. É por isso que tudo aquilo que se esconde nas tuas entrelinhas é censurado, proibido e queimado em efígie. A realidade não se selecciona, é como a heroína. E tu votaste neles, mas não gostas de quem se mascara de oprimido. Não gostas do desconforto que te causam, porque a impostura é uma pele que usas com conforto desditoso.
Pegas numa caçadeira e desatas aos tiros, até os matares a todos. Sonhas com os pormenores, com o sangue a brotar, com os miolos a poluir as certezas confortaveizinhas de todos os porcos e carneiros que estão prestes a saber que a lógica e a razão presidem, num trono inefável, aos destinos do mundo, e és tu o seu anjo vingador. Carregas a caçadeira e dás-lhes esse prazer, o prazer do sentido, o prazer de mostrar ao mundo que vivi para qualquer coisa, fui o móbil deste acto estouvado, desta assassina demente, mas servi para alguma coisa, não fui cúmplice de Chaplin, não causei o suicídio de Débord, embora seja uma pequena nota de rodapé nos borbotões da História.
E eu quero mudar. Quero escrever nos sulcos da carne. Quero arranhar a terra até lhe mostrar a minha dor. Vocês votam e choram de barriga cheia. E dizem que sim com um sorriso enquanto se fazem Dalilas.
22/12/2010
We be free in the land of freedom or we be dead
I'm Free - Soul Position
[Intro:]
(I'm free!)
Son you gotta just hit it hard
You gotta do it right baby
No bullshittin
[Chorus:]
(I'm free!) You free now, are you really?
How free, since when?
You free now, are you really?
How free, since when?
[Blueprint:]
Tryin to get a free mind, in these free times
But I only feel free when I freestyle
Any other time, money's on my mind
Can't be free when I'm a slave to free enterprise
Some of us don't get it, we think it's copacetic
Got some free love and ended UP in a FREE clinic
Some free medicine, a free prescription
Some people think bein free means bein unprotected
It ain't right to me, somebody lied to me
When they said that the best things in life are free
It don't seem to be that cool bein free
Cause man brings anything free to its knees
We cut down trees, 'til everything's extinct
Then build free-ways over where they used to be
It's like a free-for-all that keeps me amazed
In the land of free, home of the brave
[Chorus]
[Blueprint:]
Let freedom rain down on this whole nation
Full of freemasons and fiends freebasin
Friends freeloadin lookin for a free meal
Girls that got in the club free just to steal
Homeless people think they free, I think it's funny
Cause freedom is a joke when everything costs money
You can't even fuck for free, that's out of the question
Prostitution is the world's oldest profession
Independent women claimin free, could of fooled me
If that's true why you let dude buy you drinks?
It might seem free, cause you didn't pay
But dude who bought you that, he tryin to get laid
Freedom in America, is all about consumption
You ain't free unless you get out there and buy somethin
More spendin, more taxes
More money for our military actions
[Chorus]
(I'm free! ... I'm free!)
Those smiles we bore and lost
Beirut - Sunday Smile
All I want is the best for our lives my dear,
and you know my wishes are sincere.
Whats to say for the days I cannot bear
a Sunday smile you wore it for a while.
A Sunday mile we paused and sang.
A Sunday smile you wore it for a while.
A Sunday mile we paused and sang.
A Sunday smile and we felt true. (and)
We burnt to the ground
left for you to admire
with buildings inside church of white.
We burnt to the ground left a grave to admire.
And as we reach for the sky, reach the church of white.
A Sunday smile you wore it for a while.
A Sunday mile we paused and sang.
A Sunday smile you wore it for a while.
A Sunday mile we paused and sang.
A Sunday smile and we felt true. (and)
This bitter earth may not be so bitter after all
This Bitter Earth - Dinah Washington and Max Richter
This bitter earth
What fruit it bears
What good is love
That no one shares
And if my life is like the dust
That hides the glow of a rose
What good am I
Heaven only knows
This bitter Earth
Can it be so cold
Today you're young
Too soon your old
But while a voice
Within me cries
I'm sure someone
May answer my call
And this bitter earth
May not be so bitter after all.
18/12/2010
Let's try anything once (saturday)
Ten decisions shape your life,
You'll be aware of 5 about,
7 ways to go to school,
Either you're noticed or left out,
7 ways to get ahead,
7 reasons to drop out,
When i said ' I can see me in your eyes',
You said 'I can see you in my bed',
That's not just friendship that's romance too,
You like music we can dance to,
Sit me down,
Shut me up,
I'll calm down,
And I'll get along with you,
There is a time when we all fail,
Some people take it pretty well,
Some take it all out on themselves,
Some they just take it out on friends,
Oh everybody plays the game,
And if you don't you're called insane,
Don't don't don't don't it's not safe no more,
I've got to see you one more time,
Soon you were born,
In 1984,
Sit me down,
Shut me up,
I'll calm down,
and I'll get along with you,
Everybody was well dressed,
And everybody was a mess,
6 things without fail you must do,
So that your woman loves just you,
Oh all the girls played mental games,
And all the guys were dressed the same,
Why not try it all,
If you only remember it once,
Oooh ooooooh,
Sit me down,
Shut me up,
I'll calm down,
and I'll get along with you,
Dez decisões. Quantas já tomei?
16/12/2010
Considerando que o humano ainda é um bicho-esperança
So, to clarify, a family that is undoubtedly poorer than you, me, and just about everyone else on that stretch of road, working on a seasonal basis where time is money, took an hour or two out of their day to help some strange dude on the side of the road when people in tow trucks were just passing me by. Wow...
Sim.
Wow...
13/12/2010
Get busy living or get busy dying
Entretanto, decidi voltar a tentar. Sem alaridos ou tentativas desarmantes. Tentar, apenas tentar. Para que uma ponte, e outra, se possa reerguer. E, talvez, ser um bálsamo. É que ser humano algum pode viver debaixo da ilusão de uma tempestade. Mesmo que seja uma ilusão flagrante e demente, não fomos construídos para sobreviver desse modo. Se assim fosse, teríamos dois corações e um pulmão; dois cérebros e um rim. Mas não temos. Não tenho. É justo que precisemos de astrolábios e sextantes, quando o mundo está escuro. E que esses astrolábios cortem e esfacelem. Ou que esses sextantes desmembrem memórias e as desfaçam em chamas. Mas não precisamos de estilhaçar mais nada; o que havia a perder está perdido e tão quebrado que não poderia ser reconstituído, ainda que todas as vontades divinas, Deus, YWHW, Allah, Odin, Amaterasu, Shiva, se unissem.
E sigo um caminho que termina curvo, ligeiro ponto interrogador. Não sei para onde me leva. Gostava que passasse por uma cidade italiana, para depositar um último olhar - coisas que talvez não se tenham estilhaçado por completo (é do vento, que me engana). E que me deixasse parar em Lumbini, Alice Springs e uma vilória qualquer nos Himalaias.
What I wanted to be told before it was too late
This song ain't about your sex, sugar
no no you know it's good
tell me 'bout what's keepin' you up at night
why you're so misunderstood.
Did you spend all your money
are you sick
are you guilty in some hell?
Did you hurt someone?
I can take it
i'm here if you need to tell
when you're ready
Did they tell you you're not interesting?
You're so full of color they're a damn lie!
Did you fall into your put again?
Well ypu know it's just a matter of time until you get out!
Oh! Did you have to cut us off?
Was it more than you could bear?
We were not your children but you taught us well
and when u think you can
I'll be waiting for you
You'll get back to me won't you?
When you're ready
please don't keep it to yourself
I can't help you till you're ready
When you're ready...
12/12/2010
Kingdom of Heaven - Director's Cut
Como 45 minutos adicionais mudam um filme. O primeiro era bom, mas desajeitado e incoerente. Prioridades de executivos idiotas. Este é o verdadeiro. E o Orlando Bloom cresce a olhos vistos. Um grande papel, uma boa história, personagens memoráveis - Salah ad-Din, Imad ad-Din e Tiberius, entre outros - e uma reflexão profunda em torno da diversidade religiosa.
Altamente recomendado.
08/12/2010
Welcome to the plutocracy!
Bill Moyers sobre Howard Zinn:
"But let’s be clear: Even with most Americans on our side, the odds are long. We learned long ago that power and privilege never give up anything without a struggle. Money fights hard, and it fights dirty. Think Rove. The Chamber. The Kochs. We may lose. It all may be impossible. But it’s OK if it’s impossible. Hear the former farmworker and labor organizer Baldemar Velasquez on this. The members of his Farm Labor Organizing Committee are a long way from the world of K Street lobbyists. But they took on the Campbell Soup Company – and won. They took on North Carolina growers – and won, using transnational organizing tacts that helped win Velasquez a “genius” award from the MacArthur Foundation. And now they’re taking on no less than R. J. Reynolds Tobacco and one of its principle financial sponsors, JPMorgan-Chase.
Some people question the wisdom of taking on such powerful interests, but here’s what Velasquez says: “It’s OK if it’s impossible; it’s OK! Now I’m going to speak to you as organizers. Listen carefully. The object is not to win. That’s not the objective. The object is to do the right and good thing. If you decide not to do anything, because it’s too hard or too impossible, then nothing will be done, and when you’re on your death bed, you’re gonna say, “I wish I had done something. But if you go and do the right thing NOW, and you do it long enough “good things will happen—something’s gonna happen."
Shades of Howard Zinn!"
Quero reescrever isto. É demasiado importante. Demasiado importante para que nos possamos esquecer. Sim, pode ser impossível. Pode ser. O nosso objectivo não é vencer. É fazer a coisa certa, a coisa que nos reforça a consciência, a coisa que nos faz acordar.
"Some people question the wisdom of taking on such powerful interests, but here’s what Velasquez says: “It’s OK if it’s impossible; it’s OK! Now I’m going to speak to you as organizers. Listen carefully. The object is not to win. That’s not the objective. The object is to do the right and good thing. If you decide not to do anything, because it’s too hard or too impossible, then nothing will be done, and when you’re on your death bed, you’re gonna say, “I wish I had done something. But if you go and do the right thing NOW, and you do it long enough “good things will happen—something’s gonna happen.”
04/12/2010
Dublin a ferro e fogo
Kevin O'Rourke em Dublin:
"The reaction to the news that Irish taxpayers are to be squeezed while foreign bondholders escape scot-free has been one of outraged disbelief and anger. At the start of last week, it was possible to make the argument that ‘burning the bondholders’ was irresponsible, since it would inevitably lead to contagion, and the spread of the crisis to Iberia. That argument has at this stage lost all validity, since contagion has happened anyway. Besides, the correct response to the possibility of contagion was never to engage in make-believe, but to extend taxpayer protection to other Eurozone members as required. Swapping debt for equity in a coordinated fashion across Europe would show ordinary people that Europe is on their side; but like the PLO of old, the European Union never misses an opportunity to miss an opportunity. It could have provided a means of kick-starting a new post-crisis growth strategy based on investment in the infrastructures we will need in the future; instead it has transformed itself into a mechanism for forcing pro-cyclical adjustment onto countries that are already sinking. It could have led the way in reining in an out-of-control financial sector; instead it now embodies the discredited principle that banks must never, ever, default on their creditors, no matter how insolvent they may be."
"Iceland is an obvious model for us. In a referendum, her voters have already rejected a proposal to pay back their banks’ creditors, who will take major losses. Now they have elected a constitutional assembly charged with drafting a new constitution. Ireland probably needs this more than does Iceland; I wish I were more confident that we will follow the latter’s example."
O que acontecerá, quando a vez de Portugal chegar?
03/12/2010
Yes, it took so long...
Sweet Tides
It took so long, for me to realize
how strong your heart is
and all this time, my mind was working
in strange ways
looking back on the days, just wanna be free
through the love in your eyes
now I'm staring inside, just wanna be free
through the love in your eyes
sweet tides, pools of love
your eyes are full of.......
sweet tides, pools of love
your eyes are full of.......
sharp turn, my mind is a blur
slow passage thru the air
looking back on the days
all over your mind, just wanna be free
sweet tides, pools of love
your eyes are full of.......
sweet tides, pools of love
your eyes are full of.......
it took so long, for me to realize
how strong your heart is
and all this time, my mind was working
in strange ways
sharp turn, my mind is a blur
slow passage thru the air
looking back on the days
all over your mind, just wanna be free
sweet tides, pools of love
your eyes are full of.......
sweet tides, pools of love
your eyes are full of.......
02/12/2010
I went to North Korea and all I got was this awesome slideshow.
A Coreia do Norte na galeria de um utilizador do Flickr. Não inclui todas.
Perturbador. E morbidamente fascinante.
Perturbador. E morbidamente fascinante.
01/12/2010
Why is we Americans, por Amiri Baraka
O maravilhoso Amiri Baraka. Jazz poetry a um nível tão elevado que quero voltar a recitar, a cantar, a refulgir.
E uma alma imensa, magnânima, genial, geniosa, gigante.
Tu-ri-ra...
Tu-ri-ra...
30/11/2010
Bilhete de Identidade
por Mahmoud Darwish
Escreve!
Sou árabe
e o meu bilhete de identidade é o número cinquenta mil.
Tenho oito filhos
E o nono chegará no fim do verão.
Terás raiva?
Escreve!
Sou árabe
Trabalho com os meus camaradas numa pedreira
Tenho oito filhos
Trago-lhes pão
e roupas e livros
a partir das rochas...
Não suplico caridade no teu alpendre,
nem me humilho à entrada do teu quarto.
Então, terás raiva?
Escreve!
Sou árabe
Tenho um nome sem título
Paciente num país
onde todos estão furiosos
As minhas raízes
estavam enterradas antes do nascer do tempo,
antes do início das eras,
antes dos pinheiros e das oliveiras,
e antes da relva crescer.
O meu pai descende da família do arado,
Não de uma classe privilegiada.
O meu avô era um agricultor,
Não era bem-criado ou bem-nascido!
Ensina-me o orgulho do sol
antes de me ensinar a ler
e a minha casa é como a cabana de um vigia
feita de ramos e canas
Estás contente com o meu estatuto?
Tenho um nome sem título!
Escreve!
Sou árabe.
Roubaste os pomares dos meus antepassados
e a terra onde cultivei
ao lado dos meus filhos.
Nada nos deixaste
A não ser as rochas...
E o Estado levá-las-á,
Como têm dito?
Portanto!
Escreve no topo da primeira página:
Não odeio os seres humanos
nem invado o seu espaço.
Porém, se tiver fome,
A carne dos usurpadores será o meu alimento.
Cuidado.
Cuidado
com a minha fome
e a minha fũria!
Ode to the Drum
por Yusef Komunyakaa
Gazelle, I killed you
for your skin's exquisite
touch, for how easy it is
to be nailed to a board
weathered raw as white
butcher paper. Last night
I heard my daughter praying
for the meat here at my feet.
You know it wasn't anger
that made me stop my heart
till the hammer fell. Weeks
ago, I broke you as a woman
once shattered me into a song
beneath her weight, before
you slouched into that
grassy hush. But now
I'm tightening lashes,
shaping hide as if around
a ribcage, stretched
like five bowstrings.
Ghosts cannot slip back
inside the body's drum.
You've been seasoned
by wind, dusk & sunlight.
Pressure can make everything
whole again, brass nails
tacked into the ebony wood
your face has been carved
five times. I have to drive
trouble from the valley.
Trouble in the hills.
Trouble on the river
too. There's no kola nut,
palm wine, fish, salt,
or calabash. Kadoom.
Kadoom. Kadoom. Ka-
doooom. Kadoom. Now
I have beaten a song back into you,
rise & walk away like a panther.
27/11/2010
História da esmeralda I
"Chega aqui. Quero contar-te uma história. Não tenho muito tempo, sinto os joelhos a liquefazerem-se. É importante que a ouças. Para mim, pelo menos". "Estou de partida. Despacha-te, velho, se é assim tão importante". "Serei, se mo permitires. A brevidade vem com a velhice: percebemos que o silêncio é o sono da palavra, e, neste mundo ensurdecedor, já falamos demais". "Pois. Que história, então?"
Era uma vez. Todas as histórias de encantar parecem iniciar-se por esta expressão, suponho. E esta não é uma história de encantar dotada de encantos invulgares, odores mágicos ou reinos esquecidos. É uma história de encantar, ou desencantar, se o teu coração quiser lê-la assim, tão vulgar e desbrilhosa como milhares de outras, desvanecidas. Mas sim, era uma vez.
A esmeralda calou-se. Sentiu que o seu verde, pelo primeiro momento em milénios, soçobrava. Algo estava errado.
Era uma vez. Todas as histórias de encantar parecem iniciar-se por esta expressão, suponho. E esta não é uma história de encantar dotada de encantos invulgares, odores mágicos ou reinos esquecidos. É uma história de encantar, ou desencantar, se o teu coração quiser lê-la assim, tão vulgar e desbrilhosa como milhares de outras, desvanecidas. Mas sim, era uma vez.
A esmeralda calou-se. Sentiu que o seu verde, pelo primeiro momento em milénios, soçobrava. Algo estava errado.
26/11/2010
Animar a malta
O que faz falta
Quando a corja topa da janela
O que faz falta
Quando o pão que comes sabe a merda
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
Quando nunca a noite foi dormida
O que faz falta
Quando a raiva nunca foi vencida
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é acordar a malta
O que faz falta
Quando nunca a infância teve infância
O que faz falta
Quando sabes que vai haver dança
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta
Quando um cão te morde uma canela
O que faz falta
Quando a esquina há sempre uma cabeça
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta
Quando um homem dorme na valeta
O que faz falta
Quando dizem que isto é tudo treta
O que faz falta
O que faz falta é agitar a malta
O que faz falta
O que faz falta é libertar a malta
O que faz falta
Se o patrão não vai com duas loas
O que faz falta
Se o fascista conspira na sombra
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é dar poder à malta
O que faz falta
24/11/2010
Dos gorilas
Quero lá saber que a fotografia esteja mal formatada.
É um abuso. Uma vergonha. Um atentado contra tudo aquilo por que lutámos, lutamos e lutaremos. A minha Faculdade de sempre violada pelos gorilas-redux.
É um dia enegrecido. É dia de greve geral. E era bom que a greve se prolongasse por luas, saturnos e uranos.
Isto não pode continuar assim. Precisamos de voltar a sonhar.
FCSH Lisboa :: PSP entra na faculdade e identifica estudante
FCSH Lisboa :: PSP entra na faculdade e identifica estudante
A minha faculdade. A nossa faculdade. Invadida por gorilas mentecaptos, pretorianos a soldo da podridão. E a minha alma mater violada sem apelo nem agravo.
A minha faculdade. A nossa faculdade. Invadida por gorilas mentecaptos, pretorianos a soldo da podridão. E a minha alma mater violada sem apelo nem agravo.
23/11/2010
We will dance because we are the revolution.
É preciso dançar. É preciso respirar. A greve de hoje anuncia-o. A sociedade está viva e reagirá, a favor de uma vida nova. A favor de tudo o que nos dará um futuro. Já não somos contra nada.
Não somos contra a corrupção. Somos a favor da transparência.
Não somos contra a desigualdade. Somos a favor da igualdade.
Não somos contra a injustiça. Somos a favor da justiça.
Não somos contra o neoliberalismo. Somos a favor do controlo democrático da economia pelos cidadãos que a constituem.
Não somos contra a elite dominante. Somos a favor de um diálogo e de uma renovação sustentada.
Não somos contra o ódio. Somos a favor do amor.
Não somos contra o desemprego. Somos a favor do pleno emprego.
Não somos contra a guerra. Somos a favor da paz.
Não somos contra nada. Somos a favor do florescimento da humanidade.
Em suma, a minha geração já se cansou de ser contra tudo e contra todos. Hoje, somos a favor de algo. Somos a favor de um mundo novo. Não lutamos contra a infelicidade, mas a favor da felicidade.
Por isso, a minha maneira de protestar será sorrir. Será lançando gargalhadas implacáveis contra a classe política tecnocrática, ante a sua insignificância e demência crescentes. Não sei dançar, mas bambolearei o meu corpo. Não sei cantar, mas cantarei a plenos pulmões. Não sei desenhar, mas desenharei este mundo que é um sonho de todos os que não se deixam vergar aos indicadores, às produtividades, às eficiências, aos sistemas de controlo controlado e recontrolado. Nós ainda sonhamos. Nós ainda estamos por cá, ainda passamos as mãos pela relva recém-cortada, ainda dizemos "obrigado" quando nos sorriem de volta. E, por isso, sorrirei. Regozijar-me-ei, celebrarei a amizade, o amor, as ligações, a solidariedade, a cooperação, porque são elas que valem o esforço, o sangue, o suor, as lágrimas e as dores de cabeça.
Essa é a melhor forma de protestar. É a melhor forma de reduzir o neoliberalismo, o caciquismo, o aproveitamento ínvio do património público e as sevícias praticadas por moralistas à sua condição de rodapés da história.
Eu não sou contra o governo. Adiro à greve porque a sociedade deve mostrar que está viva. E mostraremos.
22/11/2010
Confiar
Hoje, voltei a compreender porque é que nós, enquanto seres vivos, humanos, primatas, precisamos de amigos. De pessoas que nos ultrapassem, não porque querem vencer a corrida, mas porque estacam em curvas difíceis para nos amparar, quando derrapamos. E, hoje, o z. e a a. deram-me uma lição de humanidade. Que também preciso delas, e muito, embora pouca gente se disponha a dar-mas.
Dizem-me que, neste espaço, se respira um ar inquinado de crueldade, de memórias distorcidas, que não deveriam ser partilhadas. E têm razão. Arrependo-me. Aprendi o valor do arrependimento, de voltar atrás e reconsiderar. É isto que nos torna mais fortes sem que nos tornemos cínicos.
Apesar de continuar a sentir a indiferença despudorada como uma punhalada - nem uma mensagem acerca da saúde de alguém próximo, nem uma demonstração de sensibilidade, que me seria, confesso, cara -, percebo que não posso continuar desta forma, embora tenha esse direito. Prescindo dele. Que a a., como de costume, é muito mais sensata que eu, e preciso da sua sensatez para enfrentar o mundo. E que o z., embora ninguém lho possa dizer, é muito melhor ser humano que eu, e preciso da sua humanidade para não me esvair em desmandos pedantes.
Sabendo que eles estão ali, na curva apertada, dispostos a amparar a minha derrapagem, apesar de tudo o que sofrem e passam, custa menos.
Perdoar ainda é uma estrada longa. Mas chegarei ao termo desse périplo. Com arrependimento, com mágoa, com tristeza. Mas com a sensatez e a humanidade daqueles que me rodeiam e, imperceptivelmente, me guardam na noite escura deste período da minha vida.
(e sim, isto é confessionalzinho e diarístico, mas... tinha que ser.)
21/11/2010
No baú IV - Pablito, Pablito, que recordações me trazes? (29/10/2007)
EL GRAN OCÉANO
SI de tus dones y de tus destrucciones, Océano
a mis manos
pudiera destinar una medida, una fruta, un fermento,
escogería tu reposo distante, las líneas de tu acero,
tu extensión vigilada por el aire y la noche,
y la energía de tu idioma blanco
que destroza y derriba sus columnas
en su propia pureza demolida.
No es la última ola con su salado peso
la que tritura costas y produce
la paz de arena que rodea el mundo:
es el central volumen de la fuerza,
la potencia extendida de las aguas,
la inmóvil soledad llena de vidas.
Tiempo, tal vez, o copa acumulada
de todo movimiento, unidad pura
que no selló la muerte, verde víscera
de la totalidad abrasadora.
Del brazo sumergido que levanta una gota
no queda sino un beso de la sal. De los
cuerpos
del hombre en tus orillas una húmeda
fragancia
de flor mojada permanece. Tu energía
parece resbalar sin ser gastada,
parece regresar a su reposo.
La ola que desprendes,
arco de identidad, pluma estrellada,
cuando se despeñó fue sólo espuma,
y regresó a nacer sin consumirse.
Toda tu fuerza vuelve a ser origen.
Sólo entregas despojos triturados,
cáscaras que apartó tu cargamento,
lo que expulsó la acción de tu abundancia,
todo lo que dejó de ser racimo.
Tu estatua está extendida más allá de las olas.
Viviente y ordenada como el pecho y el manto
de un solo ser y sus respiraciones,
en la materia de la luz izadas,
llanuras levantadas por las olas,
forman la piel desnuda del planeta.
Llenas tu propio ser con tu substancia.
Colmas la curvatura del silencio.
Con tu sal y tu miel tiembla la copa,
la cavidad universal del agua,
y nada falta en ti como en el cráter
desollado, en el vaso cerril:
cumbres vacías, cicatrices, señales
que vigilan el aire mutilado.
Tus pétalos palpitan contra el mundo,
tiemblan tus cereales submarinos,
las suaves ovas cuelgan su amenaza,
navegan y pululan las escuelas,
y sólo sube al hilo de las redes
el relámpago muerto de la escama,
un milímetro herido en la distancia
de tus totalidades cristalinas.
Pablo Neruda
20/11/2010
No baú III - Sophia, Itália e uma enxurrada de memórias
Bebido o luar, ébrios de horizontes,
Julgamos que viver era abraçar
O rumor dos pinhais, o azul dos montes
E todos os jardins verdes do mar.
Mas solitários somos e passamos,
Não são nossos os frutos nem as flores,
O céu e o mar apagam-se exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos.
Por que jardins que nós não colheremos,
Límpidos nas auroras a nascer,
Por que o céu e o mar se não seremos
Nunca os deuses capazes de os viver.
Sophia de Mello Breyner Andresen
No baú II
The beep beep song, por Simone White
Beep beep beep beep beep beep beep
go the horns in the cars in the street
we walked away from the lover's leap
opposite directions
synchronised feet
wait wait wait wait wait wait wait
for the time it takes a heart to mend a break
how many moons are reflected in the lake
can you wait forever if time is all it takes
despite all the warnings
I landed like
a fallen star
in your arms
beat beat beat beat beat beat beat
goes my heart on the side of my sleeve
whispering something I can hardly believe
"let me take the lead
cos love is all we need
Beep beep beep beep beep beep beep
go the horns in the cars in the street
we walked away from the lover's leap
opposite directions
synchronised feet
wait wait wait wait wait wait wait
for the time it takes a heart to mend a break
how many moons are reflected in the lake
can you wait forever if time is all it takes
despite all the warnings
I landed like
a fallen star
in your arms
beat beat beat beat beat beat beat
goes my heart on the side of my sleeve
whispering something I can hardly believe
"let me take the lead
cos love is all we need
Crónicas de Tempos e Rios
(parece que uma memória se apresta a visitar-me. e fui à procura. encontrei algo. fraco de qualidade literária, mas cândido, meigo, de uma doçura que já não descubro cá dentro. leio isto e sorrio, três anos depois)
Crónicas de Tempos e Rios, parte I
Algures no sul de um continente esquecido, nasce um rio. É um rio modesto, pequeno. Não troveja como o Amazonas ou o Mississipi, não é imperial como o Nilo ou o Tibre, não é sagrado como o Ganges ou o Rio das Pérolas, nem brilha como o Sena ou o Tejo. O mundo é feito, muitas vezes, de coisas pequenas, que dão mais sentido à vida que as grandes coisas, os tesouros de valor incalculável, os livros de beleza impossível.
É modesto, não gosta de atrair atenções; contorna rochas com discrição e raramente reclama. Não é um rio de cascatas. Corre com firmeza, mas é dócil e simples.
Ele não gosta que o descubramos. Prefere ficar num recanto tranquilo da tua e da minha infância, quando todos os rios eram rios-de-lenda e todos os desertos eram desertos-de-maravilha. Mas os rios-de-lenda são demasiado concorridos; já se lhes descobriram os segredos todos. E os desertos só são maravilhosos até nos explicarem que aquela imensidão é só um monte de grãos de areia que preferiu não se mexer. E todos os rios escondem segredos, não é preciso ser rio-de-lenda. Este, em particular, esconde o segredo da sua própria existência, que constitui o fundamento de muitos outros segredos.
É que ele é o único rio filho de um deserto, filho da história de amor ocorrida entre a Vida e um deserto, único entre todos os cursos de água. Brota de uma planície arenosa, sem história e sem memória (já entenderás porque não tem história (que precisa do Tempo) e memória (que raramente por ali passa). Quem testemunha o seu nascimento não fica particularmente impressionado. É um nascimento sem inquietude. Talvez a forma como nascemos determine, em parte, o nosso ser. Rios que nascem impetuosos, do alto de um cume montanhoso, tornam-se torrentes aventurosas; outros, mais lânguidos, revelam a sua calmaria nas paragens que escolhem para espraiar as suas águas.
Ele nasce de um deserto, e não conhece outro, não sabe que os desertos têm limites e podem ser atravessados. Porque nasce, corre e desagua no mesmo solo arenoso; na verdade, posso dizer-te que é o único rio, no mundo inteiro, que não conhece o mar. Há rios que nunca chegam a vê-lo, mas conhecem-no, porque falam com rios maiores e mais viajados. Que é azul e imenso; que domina a vontade dos homens sem que eles se apercebem, porque não podem erguer-lhe barreiras. Todos os rios suspiram por esse poder; nenhum deles gosta de sufocar nas barragens que os homens erguem, para sua glória e supremacia sobre a natureza.
Mas o nosso rio preocupa-se pouco com Oceanos, com o poder e a glória que tantos procuram; ele nasce, corre e desagua na areia, onde as ilusões e o brilho do ouro têm menos valor que a paciência. Avistou, certa vez, um homem; mas este, exausto pela travessia do deserto, sedento, caíu morto nas suas margens, antes de poder explicar ao rio todas as coisas que o deserto esconde. E o rio chorou, porque nunca havia visto a morte tão de perto. Os rios choram, às vezes. Quando um lago morre, ou quando uma árvore é levada pelo deserto. O som de um rio a chorar é morno, como uma guitarra a suspirar de saudades; mas um rio é e não é, porque corre e nunca pára. Portanto, o seu choro desvanece-se com facilidade, e só resta a corrente.
Se lhe perguntasses: “ficas triste, por morrer no deserto, sem ver o mar ou os homens, com os seus palácios, os seus amores, as suas delicadezas efémeras”?, ele responder-te-ia “não sei; eu corro e desmaio no deserto; sou um rio, não te esqueças, e os rios não não mudam de ideias”. Mas ele é menos simples do que aparenta. Tem histórias para contar. Porque a sua vida se estica dentro do deserto, a areia é o seu universo. A sua Via Láctea. E, assim, as coisas que não podem ser vistas, que só os poetas e os músicos podem imaginar, vogam por ali, no limiar do deserto, à procura de repouso. Se este rio, este curso de água modesto pudesse correr nos ouvidos de um escritor, encher-se-iam dilúvios de páginas com lendas que o continente esquecido engoliu, para aclarar a mente dos homens. Não podemos viver rodeados de lendas, se queremos fazer leis. Os deuses viveram connosco, até querermos medir a electricidade dos seus poderes e a omnipotência da sua vontade. E foi nesse momento, no instante em que quisémos medir e legislar, que os deuses se desfizeram: transformaram-se em nuvens e flores, na ideia de beleza e na ideia de liberdade, no desejo de sonhar e de fazer amor. Sim, os deuses ainda velam por nós, apesar de já não lhes chamamos deuses, para não enlouquecermos. Mas há outras coisas. O mundo não é feito apenas de divindades. E o rio sabe-o. Já deve ter pensado que, ao sabê-lo, condena-se a morrer no deserto. Mas, se o deserto é um universo, o rio tem, perante ele, a mesma sensação de grandeza que tu e eu temos, ao escutar o céu estrelado. Não sabias que podes escutar o céu, aposto. Mas essa é outra história, a contar num outro deserto, talvez noutra vida…
Quando penso no rio, acredito que ele está destinado a morrer só, para que os segredos da sua corrente, da sua água, não entrem no Oceano e penetrem o Universo. Já não conseguimos acreditar em magia; é melhor para nós, se desejamos riqueza com tanto ardor.
O rio sabe que o Tempo e a Memória também precisam de descanso. Todos os átomos do universo têm tempo e memória. Mas, algures no ponto que contém todos os outros pontos do universo – e que melhor ponto será esse, se não um rio que nasce, corre e desagua onde nada consegue viver? -, todas as recordações de todos os homens de todos os tempos se unem e formam uma mulher. E isso só é possível porque, também nesse ponto, nesse ponto que nem o sonho de um geómetra poderia localizar, todos os tempos e todas as mudanças da existência se unem e transformam num homem. Dir-te-ia que é demasiado típico, demasiado óbvio, demasiado cliché… Mas as histórias de encantar também precisam de ser familiares, de soar como uma melodia antiga, que já ouvimos, algures.
Tempo e Memória existem um pelo outro e um para o outro. Memória não existiria sem Tempo; Tempo não faria sentido sem Memória. Gémeos (embora não siameses), falam em silêncio, cada um na sua margem do rio. Trocam olhares cúmplices, porque só eles reconhecem a sua presença; e sabem, porque nem eles podem vergar o universo à sua vontade (mesmo quando é um deserto arenoso e vazio), que têm de estar separados.
Quando trocam olhares, o Mundo mantém o seu sentido ancestral: os seres humanos apaixonam-se e desaparecem, as florestas ouvem, em segredo, o riso dos rios que procuram o Oceano, as árvores levam a esperança aos caçadores do princípio da Realidade.
Eles sabem, o rio sabe, que, se algum deles cedesse ao desejo de atravessar o fio de água – porque têm uma paixão secreta -, Memória enlouqueceria e Tempo desapareceria.
O rio corre sem pressas, com velocidade suficiente para não desfalecer. Tempo e Memória semicerram o olhar, tentando imaginar outra terra e outro rio. Porque eles, que nos protegem da loucura e do esquecimento, são tão poderosos que nos parecem fracos. Tempo é, dizemos nós, uma invenção humana para nos enjaular. E ele diz, com uma voz sem pressa e sem vagar, algures fora do curso da História: “os humanos dizem inventar aquilo que não podem controlar; assim, iludem-se com a possibilidade de me controlar. Inventam relógios e julgam trancar-me dentro dos ponteiros.”. Memória, que está inscrita nos livros do Destino e, portanto, é feita de letras, notas musicais e cores desvanecidas, assente, com a sabedoria de quem compreende ser impossível prever o futuro a partir de si mesma. Quando Tempo se levanta, rumo ao deserto, Memória sente os joelhos enfraquecer.
E Tempo chora. Chora pelo rio que tornará a morrer, um sem-número de vezes, até poder voltar a acariciar-lhe a água. Chora porque acumulará todas as tristezas e todas as alegrias que o Mundo produz. Chora porque vê Memória a fraquejar; sabe que ela precisa de uma força que perde, quanto mais distante ele estiver. Caem-lhe lágrimas porque é, realmente, uma invenção dos Homens, e precisa de viver na sua ilusão; e sabe que Memória é mais frágil.
Memória não consegue chorar como Tempo. Olha o rio e repara no seu reflexo; mas vê todos os reflexos que já vira e compreende que mudou de forma, mas é um retalho de todas as recordações já sucedidas e, por isso, a sua beleza é a de nunca ser fiel. Memória tenta chorar, para que Tempo regresse, mas ele não o fará. Ela fica só, à beira do rio. Talvez essa solidão, Memória sem Tempo, sejam as lágrimas de Memória, na saudade do Tempo. Ela sabe que, quando ele regressar, já nada restará, tudo será docemente enevoado. Porque o romance do Tempo e da Memória é um conto encantado que nunca termina; é uma fábula que te ofereço, na noite em que um rio abensonhado retorna ao local onde nasce, na noite em que Tempo e Memória, por dois segundos apenas, enganam o Mundo e trocam um olhar eterno. E é nesse olhar que ficam, porque o Tempo também precisa da eternidade para sonhar. Que o amor toca a todos, mesmo que a distância seja um rio, um mar ou apenas a tristeza de partir. Tempo e Memória, em permanente dança, pontos minúsculos na beira-rio de um continente esquecido, olham para aquilo que tentam esquecer.
O rio corre, modesto e gentil. “Se eles, lá longe, soubessem”, ri-se para dentro. “Se eles, lá longe, soubessem que Tempo e Memória não podem ver-se separados, mas vivem em permanente separação…”, continua, “talvez as canções de amor fossem menos magoadas; talvez todos fossem menos saudosos e trágicos, que a paixão dos homens dura pouco, menos ainda que a vida de um rio no deserto”, a voz dele adquire vivacidade, a velocidade da sua corrente aumenta, “e todas as guerras e distâncias e tristezas, todas as saudades e palavras duras e lágrimas, todos os sonhos e coisas impossíveis e tesouros doridos, talvez todas essas coisas desaparecessem, como névoa num dia em que duas pessoas se separam, cientes de que nunca mais se verão”. E ele continua a correr, enquanto pensa, com ternura, em Tempo que chora, e Memória que fraqueja e recorda.
18/11/2010
I carry it in my heart
e.e. cummings
i carry your heart with me(i carry it in
my heart)i am never without it(anywhere
i go you go,my dear; and whatever is done
by only me is your doing,my darling)
i fear
no fate(for you are my fate,my sweet)i want
no world(for beautiful you are my world,my true)
and it's you are whatever a moon has always meant
and whatever a sun will always sing is you
here is the deepest secret nobody knows
(here is the root of the root and the bud of the bud
and the sky of the sky of a tree called life;which grows
higher than the soul can hope or mind can hide)
and this is the wonder that's keeping the stars apart
i carry your heart(i carry it in my heart)
Por muito que o leia, nunca conseguirei abarcar toda a largura e densidade deste texto. Acho redutor denominá-lo poema. É uma declaração de amor. É um regozijo e um lamento. É tudo o que nós queremos, como seres humanos, e sonhamos e deliramos e desejamos e alvitramos nas nuvens, como se estivesse atrás de uma porta fechada no trinco, à qual podemos aceder, se fizermos um esforço final. E sempre tão distante. Mas transportamos sempre o coração de alguém no nosso coração. E é isso que nos transforma.
Irresistível.
16/11/2010
Talvez
Às vezes, entre os respingos da chuva, ainda a sinto. É uma saudade doce e magoada, chora enquanto desfalece. E sei, mais uma vez, que perdi uma enseada. E todas as coisas perfumadas que eram tuas. E minhas. E nossas. E de toda a gente que estava do lado de fora.
Mas reconheço-me, agora. De olhos enxutos e estranhos. E os espelhos já não me mentem. Estou mais pobre e mais triste. Mas, repito-me, o peso da tristeza é uma pluma delicada que se transformará em doçura. E a saudade murmura, perdida nos meus labirintos. Estou mais triste, mas não mais pobre. Enganei-me. Descobri que devemos enfrentar. E permitir-nos, de vez em quando, dar lições à vida. Todos os professores precisam, ainda que infrequentemente, de uma chamada de atenção. E, por isso, deixo que a saudade murmure com doçura e se afaste. Talvez atravesse o rio Lima. Talvez me esqueça. Talvez nos esqueçamos.
Talvez...
14/11/2010
Si alguna vez
Si alguna vez no hubieses existido,
si el calor de tus muslos no me hubiese
buscado como un látigo preciso
y mis ambigüedades electivas
-los días más oscuros de mí mismo-
no te hubiesen tenido como saldo
de afirmación o excusa,
es posible
que este volver a casa en soledad
y demasiado pronto,
me recordase ahora un poco menos
al joven que apostaba por el mundo,
con el mundo a su espalda.
Sólo el amor es duro.
Metidos en la noche, regresando
entre la potestad y la mentira,
hablamos del poder o de los sueños
al hablar del abrazo.
Y no lo sé tal vez, no sé si me recuerdo
prisionero de un cuerpo o libre junto a él,
buscando salvación o en servidumbre,
miserable y maldito, pero atónito.
Quizás sólo se trata de que no estás aquí,
de que perder es duro para todos
y el amor me hace falta, como sabes.
Quizás contigo estuve
tan demasiado cerca de tu reino,
que necesito ahora desmentirte,
utilizar los trucos que uno tiene
para poder seguir.
Porque somos así seguramente,
huellas equivocadas,
solitarias hogueras de un camino,
paraísos de cuatro habitaciones
que sólo se comprenden
después de haber firmado muchas veces,
precisamente ahí,
donde pone El viajero.
Y a mí, ya que prefiero escoger mis derrotas,
quiero que me recuerdes derrotado,
como quien algo espera
más allá de los tiempos y los hechos.
Quizás porque haga falta haberlo presagiado
o porque, en todo caso, nadie sabe
dónde acaban los sueños.
Luis Garcia Montero
Seria mais fácil? Mais difícil? Os olhos dropejam, em busca da escuridão. Enquanto apago as pistas. E reconstruo mais aquele momento sem ti. E o outro, onde nada faria sentido sem a tua presença, surge-me, na mente, repentinamente mais pobre. Não sei porquê.
Talvez que éramos mais ricos quandos nos olhávamos e víamos mundos só nossos. Ninguém sabe onde acabam os sonhos; sabíamos nós onde começavam os nossos.
Também prefiro que me recordes como derrotado. Escalei uma parede de gelo e fracassei. Estamos mais pobres. E este é um mundo onde a nossa pobreza é triste.
10/11/2010
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Sophia
Nunca, como agora, percebo isto: Porque os outros são os túmulos caiados/ Onde germina calada a podridão.
E continuo a achar que o peso da culpa é maior que o peso da tristeza, porque é, naqueles que o carregam, "Onde germina calada a podridão".
09/11/2010
Respirar fundo
Porque, apesar da traição, ainda estou vivo. Ainda estou aqui. No centro da tempestade, mas aqui. Apesar de tanto pontapé nas vísceras, ainda as sinto.
E o mundo é enorme. Os sapos ainda nascem. O sol ainda decresce, ao entardecer. Apesar da dívida pública e da descoberta, em Portugal, de que há um país chamado China, estamos vivos. E, um dia, longínquo, serei capaz de olhar para este agora obscuro e rir-me, ainda que tristemente.
Respiro fundo.
A one and a two...
07/11/2010
Oiço isto e ainda me arrepio. Enquanto isso acontecer, sei que não podemos desanimar. Apesar dos filhos da puta desta vida. E das outras. E de todos os males e bens que nos desejam como morte certa.
Ainda aqui estamos. Só isso é certo. E, um dia, um dia rarefeito e nervoso, mas esperançado, "havemos de ser mais, que eu bem sei". Obrigado ou não, virei para a rua gritar. Sem jargões, graus ou domínios.
Venham Mais Cinco, por Zeca Afonso
Venham mais cinco, duma assentada que eu pago já
Do branco ou tinto, se o velho estica eu fico por cá
Se tem má pinta, dá-lhe um apito e põe-lhe a andar
De espada cinta, já crê que rei aquém de além-mar
No me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que é já tempo d' embalar a trouxa
E zarpar
A gente ajuda, havemos de ser mais eu bem sei
Mas há quem queira, deitar abaixo o que eu levantei
A bucha dura, mais dura a razão que a sustém
só nesta rusga não há lugar prós filhos da mãe
No me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que já tempo d' embalar a trouxa
E zarpar
Bem me diziam, bem me avisavam como era a lei
Na minha terra, quem trepa no coqueiro o rei
A bucha dura, mais dura a razão que a sustém
só nesta rusga não há lugar prós filhos da mãe
No me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que já tempo d' embalar a trouxa
E zarpar
04/11/2010
Regresso a casa: Getting connected
Algures em Kreuzberg.
E eu à espera de regressar a casa. Depois de ter sido ignorado pela enésima vez por razões desconhecidas, creio ser a altura. E esquecer a lua. E a humidade das noites. E os suspiros de contentamento.
Tudo porque, para alguns seres humanos, é fácil delinear as ausências. Traçar uma fronteira e respeitá-la, esquecendo-a.
Preciso de uma Paulaner. Ou de uma Franziskaner. Ou de um esquecimento maciço que me tombe na compreensão da artificialidade. É que os pontos de exclamação e o tom plastificado sabem a agulhas e veneno; não os entendo, não posso entendê-los. Se o fizer, descobrirei fantasmas e terei raiva.
03/11/2010
Contra a memória trapaceira
Pergunta dolorosa do dia:
Devemos continuar a bater às portas que nos fecharam com estrondo, até que os nós dos dedos sangrem e as cordas vocais estalem?
As mentes ditas sãs dizem que não. O poder da inércia e do esquecimento, já para não falar da utilidade calculada, é tenaz.
Talvez eu e mais uns quantos não sejamos sãos. E desejemos sangrar. E que o nosso sangue seja adubo e o estalo das cordas vocais faísca.
Mais uma vez. Truz. Até já não saber por que razão tento. Até já não saberes por quem ou porque lutas. E estrebuchas. E tremeluzes.
Bom. Que outros acordes, menos divagados, me chamam. E mais uma odisseia de lados obscuros me recolhe.
Até logo.
Os génios andam aí.
Porque aquilo que os mercados querem, desejam, anseiam, é putas e vinho verde.
Sempre o soube.
02/11/2010
Que a tempestade não me ache só
Salas cortantes de corredores frios e inexpugnáveis. Penso que estou trancado num conto de Allan Poe. E que nem a chegada de uma chave secreta (vem demasiado tarde - é que nem todas as chaves abrem portas de pedra) porá fim a um caminho que adivinho longo.
Mas, pela primeira vez, não será só. Noto ventos diversos, desta feita. Que me empurram, feitos alísios ou mistrais (confesso, só lhes bebo o nome, não reconheço especificidades técnicas), rumo a um destino.
Ainda que busque esse Sang Réal, e me iluda com a sua existência (é de tanto pontapé na pinha, acabamos por alucinar), espero ficar saciado em breve. E conformar-me com uma evidência: a de que o carinho nada pode contra a inércia e o desprezo. Um terço da vida até percebermos isto não é assim tanto, pensando bem.... recordando Thoreau.
01/11/2010
Amanhã
À espera da reconexão-religação-renegociação-redisposição.
Amanhã, nova visita à sala de espera onde nem Borges encontraria bestas encantadas.
Tremeluz, ao fundo do túnel. E gentes novas, que também tremeluzem, embora se deixem seduzir por outros destinos. Eis que me recentro e desconcentro, para não ser demasiado convergente (e que me perdoes, se fazes favor - é que temos uma vida a viver, e o lastro é letal).
Porque há quem divague muito, mas mesmo muito melhor que eu.
George Orwell
Some Thoughts on the Common Toad
"Before the swallow, before the daffodil, and not much later than the snowdrop, the common toad salutes the coming of spring after his own fashion, which is to emerge from a hole in the ground, where he has lain buried since the previous autumn, and crawl as rapidly as possible towards the nearest suitable patch of water. Something — some kind of shudder in the earth, or perhaps merely a rise of a few degrees in the temperature — has told him that it is time to wake up: though a few toads appear to sleep the clock round and miss out a year from time to time — at any rate, I have more than once dug them up, alive and apparently well, in the middle of the summer.
At this period, after his long fast, the toad has a very spiritual look, like a strict Anglo-Catholic towards the end of Lent. His movements are languid but purposeful, his body is shrunken, and by contrast his eyes look abnormally large. This allows one to notice, what one might not at another time, that a toad has about the most beautiful eye of any living creature. It is like gold, or more exactly it is like the golden-coloured semi-precious stone which one sometimes sees in signet-rings, and which I think is called a chrysoberyl.
For a few days after getting into the water the toad concentrates on building up his strength by eating small insects. Presently he has swollen to his normal size again, and then he hoes through a phase of intense sexiness. All he knows, at least if he is a male toad, is that he wants to get his arms round something, and if you offer him a stick, or even your finger, he will cling to it with surprising strength and take a long time to discover that it is not a female toad. Frequently one comes upon shapeless masses of ten or twenty toads rolling over and over in the water, one clinging to another without distinction of sex. By degrees, however, they sort themselves out into couples, with the male duly sitting on the female's back. You can now distinguish males from females, because the male is smaller, darker and sits on top, with his arms tightly clasped round the female's neck. After a day or two the spawn is laid in long strings which wind themselves in and out of the reeds and soon become invisible. A few more weeks, and the water is alive with masses of tiny tadpoles which rapidly grow larger, sprout hind-legs, then forelegs, then shed their tails: and finally, about the middle of the summer, the new generation of toads, smaller than one's thumb-nail but perfect in every particular, crawl out of the water to begin the game anew.
I mention the spawning of the toads because it is one of the phenomena of spring which most deeply appeal to me, and because the toad, unlike the skylark and the primrose, has never had much of a boost from poets. But I am aware that many people do not like reptiles or amphibians, and I am not suggesting that in order to enjoy the spring you have to take an interest in toads. There are also the crocus, the missel-thrush, the cuckoo, the blackthorn, etc. The point is that the pleasures of spring are available to everybody, and cost nothing. Even in the most sordid street the coming of spring will register itself by some sign or other, if it is only a brighter blue between the chimney pots or the vivid green of an elder sprouting on a blitzed site. Indeed it is remarkable how Nature goes on existing unofficially, as it were, in the very heart of London. I have seen a kestrel flying over the Deptford gasworks, and I have heard a first-rate performance by a blackbird in the Euston Road. There must be some hundreds of thousands, if not millions, of birds living inside the four-mile radius, and it is rather a pleasing thought that none of them pays a halfpenny of rent.
As for spring, not even the narrow and gloomy streets round the Bank of England are quite able to exclude it. It comes seeping in everywhere, like one of those new poison gases which pass through all filters. The spring is commonly referred to as ‘a miracle’, and during the past five or six years this worn-out figure of speech has taken on a new lease of life. After the sorts of winters we have had to endure recently, the spring does seem miraculous, because it has become gradually harder and harder to believe that it is actually going to happen. Every February since 1940 I have found myself thinking that this time winter is going to be permanent. But Persephone, like the toads, always rises from the dead at about the same moment. Suddenly, towards the end of March, the miracle happens and the decaying slum in which I live is transfigured. Down in the square the sooty privets have turned bright green, the leaves are thickening on the chestnut trees, the daffodils are out, the wallflowers are budding, the policeman's tunic looks positively a pleasant shade of blue, the fishmonger greets his customers with a smile, and even the sparrows are quite a different colour, having felt the balminess of the air and nerved themselves to take a bath, their first since last September.
Is it wicked to take a pleasure in spring and other seasonal changes? To put it more precisely, is it politically reprehensible, while we are all groaning, or at any rate ought to be groaning, under the shackles of the capitalist system, to point out that life is frequently more worth living because of a blackbird's song, a yellow elm tree in October, or some other natural phenomenon which does not cost money and does not have what the editors of left-wing newspapers call a class angle? There is not doubt that many people think so. I know by experience that a favourable reference to ‘Nature’ in one of my articles is liable to bring me abusive letters, and though the key-word in these letters is usually ‘sentimental’, two ideas seem to be mixed up in them. One is that any pleasure in the actual process of life encourages a sort of political quietism. People, so the thought runs, ought to be discontented, and it is our job to multiply our wants and not simply to increase our enjoyment of the things we have already. The other idea is that this is the age of machines and that to dislike the machine, or even to want to limit its domination, is backward-looking, reactionary and slightly ridiculous. This is often backed up by the statement that a love of Nature is a foible of urbanized people who have no notion what Nature is really like. Those who really have to deal with the soil, so it is argued, do not love the soil, and do not take the faintest interest in birds or flowers, except from a strictly utilitarian point of view. To love the country one must live in the town, merely taking an occasional week-end ramble at the warmer times of year.
This last idea is demonstrably false. Medieval literature, for instance, including the popular ballads, is full of an almost Georgian enthusiasm for Nature, and the art of agricultural peoples such as the Chinese and Japanese centre always round trees, birds, flowers, rivers, mountains. The other idea seems to me to be wrong in a subtler way. Certainly we ought to be discontented, we ought not simply to find out ways of making the best of a bad job, and yet if we kill all pleasure in the actual process of life, what sort of future are we preparing for ourselves? If a man cannot enjoy the return of spring, why should he be happy in a labour-saving Utopia? What will he do with the leisure that the machine will give him? I have always suspected that if our economic and political problems are ever really solved, life will become simpler instead of more complex, and that the sort of pleasure one gets from finding the first primrose will loom larger than the sort of pleasure one gets from eating an ice to the tune of a Wurlitzer. I think that by retaining one's childhood love of such things as trees, fishes, butterflies and — to return to my first instance — toads, one makes a peaceful and decent future a little more probable, and that by preaching the doctrine that nothing is to be admired except steel and concrete, one merely makes it a little surer that human beings will have no outlet for their surplus energy except in hatred and leader worship.
At any rate, spring is here, even in London N. 1, and they can't stop you enjoying it. This is a satisfying reflection. How many a time have I stood watching the toads mating, or a pair of hares having a boxing match in the young corn, and thought of all the important persons who would stop me enjoying this if they could. But luckily they can't. So long as you are not actually ill, hungry, frightened or immured in a prison or a holiday camp, spring is still spring. The atom bombs are piling up in the factories, the police are prowling through the cities, the lies are streaming from the loudspeakers, but the earth is still going round the sun, and neither the dictators nor the bureaucrats, deeply as they disapprove of the process, are able to prevent it.
1946
THE END"
Para a posteridade e para me fazer sorrir. Por muito que nos acicatem, a primavera ainda nascerá quando já nada restar de nós. E isso é magnífico.
Some Thoughts on the Common Toad
"Before the swallow, before the daffodil, and not much later than the snowdrop, the common toad salutes the coming of spring after his own fashion, which is to emerge from a hole in the ground, where he has lain buried since the previous autumn, and crawl as rapidly as possible towards the nearest suitable patch of water. Something — some kind of shudder in the earth, or perhaps merely a rise of a few degrees in the temperature — has told him that it is time to wake up: though a few toads appear to sleep the clock round and miss out a year from time to time — at any rate, I have more than once dug them up, alive and apparently well, in the middle of the summer.
At this period, after his long fast, the toad has a very spiritual look, like a strict Anglo-Catholic towards the end of Lent. His movements are languid but purposeful, his body is shrunken, and by contrast his eyes look abnormally large. This allows one to notice, what one might not at another time, that a toad has about the most beautiful eye of any living creature. It is like gold, or more exactly it is like the golden-coloured semi-precious stone which one sometimes sees in signet-rings, and which I think is called a chrysoberyl.
For a few days after getting into the water the toad concentrates on building up his strength by eating small insects. Presently he has swollen to his normal size again, and then he hoes through a phase of intense sexiness. All he knows, at least if he is a male toad, is that he wants to get his arms round something, and if you offer him a stick, or even your finger, he will cling to it with surprising strength and take a long time to discover that it is not a female toad. Frequently one comes upon shapeless masses of ten or twenty toads rolling over and over in the water, one clinging to another without distinction of sex. By degrees, however, they sort themselves out into couples, with the male duly sitting on the female's back. You can now distinguish males from females, because the male is smaller, darker and sits on top, with his arms tightly clasped round the female's neck. After a day or two the spawn is laid in long strings which wind themselves in and out of the reeds and soon become invisible. A few more weeks, and the water is alive with masses of tiny tadpoles which rapidly grow larger, sprout hind-legs, then forelegs, then shed their tails: and finally, about the middle of the summer, the new generation of toads, smaller than one's thumb-nail but perfect in every particular, crawl out of the water to begin the game anew.
I mention the spawning of the toads because it is one of the phenomena of spring which most deeply appeal to me, and because the toad, unlike the skylark and the primrose, has never had much of a boost from poets. But I am aware that many people do not like reptiles or amphibians, and I am not suggesting that in order to enjoy the spring you have to take an interest in toads. There are also the crocus, the missel-thrush, the cuckoo, the blackthorn, etc. The point is that the pleasures of spring are available to everybody, and cost nothing. Even in the most sordid street the coming of spring will register itself by some sign or other, if it is only a brighter blue between the chimney pots or the vivid green of an elder sprouting on a blitzed site. Indeed it is remarkable how Nature goes on existing unofficially, as it were, in the very heart of London. I have seen a kestrel flying over the Deptford gasworks, and I have heard a first-rate performance by a blackbird in the Euston Road. There must be some hundreds of thousands, if not millions, of birds living inside the four-mile radius, and it is rather a pleasing thought that none of them pays a halfpenny of rent.
As for spring, not even the narrow and gloomy streets round the Bank of England are quite able to exclude it. It comes seeping in everywhere, like one of those new poison gases which pass through all filters. The spring is commonly referred to as ‘a miracle’, and during the past five or six years this worn-out figure of speech has taken on a new lease of life. After the sorts of winters we have had to endure recently, the spring does seem miraculous, because it has become gradually harder and harder to believe that it is actually going to happen. Every February since 1940 I have found myself thinking that this time winter is going to be permanent. But Persephone, like the toads, always rises from the dead at about the same moment. Suddenly, towards the end of March, the miracle happens and the decaying slum in which I live is transfigured. Down in the square the sooty privets have turned bright green, the leaves are thickening on the chestnut trees, the daffodils are out, the wallflowers are budding, the policeman's tunic looks positively a pleasant shade of blue, the fishmonger greets his customers with a smile, and even the sparrows are quite a different colour, having felt the balminess of the air and nerved themselves to take a bath, their first since last September.
Is it wicked to take a pleasure in spring and other seasonal changes? To put it more precisely, is it politically reprehensible, while we are all groaning, or at any rate ought to be groaning, under the shackles of the capitalist system, to point out that life is frequently more worth living because of a blackbird's song, a yellow elm tree in October, or some other natural phenomenon which does not cost money and does not have what the editors of left-wing newspapers call a class angle? There is not doubt that many people think so. I know by experience that a favourable reference to ‘Nature’ in one of my articles is liable to bring me abusive letters, and though the key-word in these letters is usually ‘sentimental’, two ideas seem to be mixed up in them. One is that any pleasure in the actual process of life encourages a sort of political quietism. People, so the thought runs, ought to be discontented, and it is our job to multiply our wants and not simply to increase our enjoyment of the things we have already. The other idea is that this is the age of machines and that to dislike the machine, or even to want to limit its domination, is backward-looking, reactionary and slightly ridiculous. This is often backed up by the statement that a love of Nature is a foible of urbanized people who have no notion what Nature is really like. Those who really have to deal with the soil, so it is argued, do not love the soil, and do not take the faintest interest in birds or flowers, except from a strictly utilitarian point of view. To love the country one must live in the town, merely taking an occasional week-end ramble at the warmer times of year.
This last idea is demonstrably false. Medieval literature, for instance, including the popular ballads, is full of an almost Georgian enthusiasm for Nature, and the art of agricultural peoples such as the Chinese and Japanese centre always round trees, birds, flowers, rivers, mountains. The other idea seems to me to be wrong in a subtler way. Certainly we ought to be discontented, we ought not simply to find out ways of making the best of a bad job, and yet if we kill all pleasure in the actual process of life, what sort of future are we preparing for ourselves? If a man cannot enjoy the return of spring, why should he be happy in a labour-saving Utopia? What will he do with the leisure that the machine will give him? I have always suspected that if our economic and political problems are ever really solved, life will become simpler instead of more complex, and that the sort of pleasure one gets from finding the first primrose will loom larger than the sort of pleasure one gets from eating an ice to the tune of a Wurlitzer. I think that by retaining one's childhood love of such things as trees, fishes, butterflies and — to return to my first instance — toads, one makes a peaceful and decent future a little more probable, and that by preaching the doctrine that nothing is to be admired except steel and concrete, one merely makes it a little surer that human beings will have no outlet for their surplus energy except in hatred and leader worship.
At any rate, spring is here, even in London N. 1, and they can't stop you enjoying it. This is a satisfying reflection. How many a time have I stood watching the toads mating, or a pair of hares having a boxing match in the young corn, and thought of all the important persons who would stop me enjoying this if they could. But luckily they can't. So long as you are not actually ill, hungry, frightened or immured in a prison or a holiday camp, spring is still spring. The atom bombs are piling up in the factories, the police are prowling through the cities, the lies are streaming from the loudspeakers, but the earth is still going round the sun, and neither the dictators nor the bureaucrats, deeply as they disapprove of the process, are able to prevent it.
1946
THE END"
Para a posteridade e para me fazer sorrir. Por muito que nos acicatem, a primavera ainda nascerá quando já nada restar de nós. E isso é magnífico.
31/10/2010
Cheguei a uma conclusão tão depredada de brilho que não mereceria vida, caso este blog não se chamasse A Arte de Divagar e eu não estivesse indeciso.
Já não nos podemos dar ao luxo de sermos simples. Simples como São Bento, Siddhartha Gautama ou Laozi. Já não há espaço para mirar montanhas e deixar os olhos cirandar pelas estrelas, enquanto nos deixamos esmagar pela hipótese do divino. Agora, há sempre barulho. Um estímulo, um flash, um clique, um link, um livro novo, uma ideia nova, um gadget estranho, uma pessoa que nos fascina e nos remata a alma. O luxo do silêncio foi-nos retirado; mesmo que nos tornemos frades, arriscamos festivais de cinema. A simplicidade é glosada como bem de burgueses e donas-de-casa enfadadas. É impossível defender a causa sem arriscar uma metralhadora de argumentos lógico-dedutivos que inferem destinos implacáveis para a simplicidade e seus quesitos fundamentais. Gozações intermináveis e tudo. Não posso ser simples, é preciso ser ligeiramente pedante e snob, ou perco a piada e a admiração e o status. QED.
E isto é uma perda lastimável, julgo. Os sabores fugidios são sempre amargosos, se tentamos fixá-los. Quero calar-me e não posso, é preciso fúria. Quero enredar-me numa história de donzelas e não posso, é preciso realidade. Queremos regressar ao mundo gentil de pastos e vaquinhas, mas não podemos; alguém provido de óculos massificados intenta uma explicação económica para o desencanto e desiste, tal a indiferença, tal o ribombo dos ritmos de Detroit e Chicago que as colunas insistem em tonitruar, encaminhando-nos para um novelo de onde jamais fugiremos.
É um luxo, ainda que a desprezemos e desejemos transfusões de fausto e opulência.
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